A
paz como caminho de esperança:
diálogo,
reconciliação e conversão ecológica
O
tema da mensagem do Papa Francisco para o 53º Dia Mundial da Paz
Instituído
pelo Papa São Paulo VI, o Dia Mundial da Paz é celebrado desde 1968
no dia 1 de Janeiro, Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus.
Este
ano, o Papa Francisco diz-nos que “a esperança é a virtude que
nos coloca a caminho, dá asas para continuar, mesmo quando os
obstáculos parecem intransponíveis.”
Entre
esses obstáculos, o Papa cita as guerras e os conflitos que
continuam a ocorrer, que marcam a humanidade na alma.
Toda
guerra, reforça, é um fratricídio.
“Há
nações inteiras que não conseguem libertar-se das cadeias de
exploração e corrupção que alimentam ódios e violências.”
MENSAGEM
DO SANTO PADRE FRANCISCO
PARA
A CELEBRAÇÃO DO DIA MUNDIAL DA PAZ
1º
DE JANEIRO DE 2020
«A
PAZ COMO CAMINHO DE ESPERANÇA:
DIÁLOGO,
RECONCILIAÇÃO E CONVERSÃO ECOLÓGICA»
1.
A
paz, caminho de esperança face aos obstáculos e provações
A
paz é um bem precioso, objecto da nossa esperança; por ela aspira
toda a humanidade.
Depor
esperança na paz é um comportamento humano que alberga uma tal
tensão existencial, que o momento presente, às vezes até custoso,
«pode ser vivido e aceite, se levar a uma meta e se pudermos estar
seguros dessa meta, se esta meta for tão grande que justifique a
canseira do caminho»[1].
Assim,
a esperança é a virtude que nos coloca a caminho, dá asas para
continuar, mesmo quando os obstáculos parecem intransponíveis.
A
nossa comunidade humana traz, na memória e na carne, os sinais das
guerras e conflitos que têm vindo a suceder-se, com crescente
capacidade destruidora, afectando especialmente os mais pobres e
frágeis.
Há
nações inteiras que não conseguem libertar-se das cadeias de
exploração e corrupção que alimentam ódios e violências.
A
muitos homens e mulheres, crianças e idosos, ainda hoje se nega a
dignidade, a integridade física, a liberdade – incluindo a
liberdade religiosa –, a solidariedade comunitária, a esperança
no futuro.
Inúmeras
vítimas inocentes carregam sobre si o tormento da humilhação e da
exclusão, do luto e da injustiça, se não mesmo os traumas
resultantes da opressão sistemática contra o seu povo e os seus
entes queridos.
As
terríveis provações dos conflitos civis e dos conflitos
internacionais, agravadas muitas vezes por violências desalmadas,
marcam prolongadamente o corpo e a alma da humanidade.
Na
realidade, toda a guerra se revela um fratricídio que destrói o
próprio projecto de fraternidade, inscrito na vocação da família
humana.
Sabemos
que, muitas vezes, a guerra começa pelo facto de não se suportar a
diversidade do outro, que fomenta o desejo de posse e a vontade de
domínio.
Nasce,
no coração do homem, a partir do egoísmo e do orgulho, do ódio
que induz a destruir, a dar uma imagem negativa do outro, a excluí-lo
e cancelá-lo.
A
guerra nutre-se com a perversão das relações, com as ambições
hegemónicas, os abusos de poder, com o medo do outro e a diferença
vista como obstáculo; e simultaneamente alimenta tudo isso.
Como
fiz notar durante a recente viagem ao Japão, é paradoxal que «o
nosso mundo viva a dicotomia perversa de querer defender e garantir a
estabilidade e a paz com base numa falsa segurança sustentada por
uma mentalidade de medo e desconfiança, que acaba por envenenar as
relações entre os povos e impedir a possibilidade de qualquer
diálogo.
A
paz e a estabilidade internacional são incompatíveis com qualquer
tentativa de as construir sobre o medo de mútua destruição ou
sobre uma ameaça de aniquilação total.
São
possíveis só a partir duma ética global de solidariedade e
cooperação ao serviço dum futuro modelado pela interdependência e
a corresponsabilidade na família humana inteira de hoje e de
amanhã»[2].
Toda
a situação de ameaça alimenta a desconfiança e a retirada para
dentro da própria condição.
Desconfiança
e medo aumentam a fragilidade das relações e o risco de violência,
num círculo vicioso que nunca poderá levar a uma relação de paz.
Neste
sentido, a própria dissuasão nuclear só pode criar uma segurança
ilusória.
Por
isso, não podemos pretender manter a estabilidade no mundo através
do medo da aniquilação, num equilíbrio muito instável, pendente
sobre o abismo nuclear e fechado dentro dos muros da indiferença,
onde se tomam decisões sócio-económicas que abrem a estrada para
os dramas do descarte do homem e da criação, em vez de nos
guardarmos uns aos outros[3].
Então
como construir um caminho de paz e mútuo reconhecimento?
Como
romper a lógica morbosa da ameaça e do medo?
Como
quebrar a dinâmica de desconfiança actualmente prevalecente?
Devemos
procurar uma fraternidade real, baseada na origem comum de Deus e
vivida no diálogo e na confiança mútua. O desejo de paz está
profundamente inscrito no coração do homem e não devemos
resignar-nos com nada de menos.
2.
A
paz, caminho de escuta baseado na memória, solidariedade e
fraternidade
Os
sobreviventes aos bombardeamentos atómicos de Hiroxima e Nagasáqui
– denominados os hibakusha – contam-se entre aqueles que, hoje,
mantêm viva a chama da consciência colectiva, testemunhando às
sucessivas gerações o horror daquilo que aconteceu em Agosto de
1945 e os sofrimentos indescritíveis que se seguiram até aos dias
de hoje.
Assim,
o seu testemunho aviva e preserva a memória das vítimas, para que a
consciência humana se torne cada vez mais forte contra toda a
vontade de domínio e destruição.
«Não
podemos permitir que as actuais e as novas gerações percam a
memória do que aconteceu, aquela memória que é garantia e estímulo
para construir um futuro mais justo e fraterno»[4].
Como
eles, há muitos, em todas as partes do mundo, que oferecem às
gerações futuras o serviço imprescindível da memória, que deve
ser preservada não apenas para evitar que se voltem a cometer os
mesmos erros ou se reproponham os esquemas ilusórios do passado, mas
também para que a memória, fruto da experiência, constitua a raiz
e sugira a vereda para as opções de paz presentes e futuras.
Mais
ainda, a memória é o horizonte da esperança: muitas vezes, na
escuridão das guerras e dos conflitos, a lembrança mesmo dum
pequeno gesto de solidariedade recebida pode inspirar opções
corajosas e até heróicas, pode colocar em movimento novas energias
e reacender nova esperança nos indivíduos e nas comunidades.
Abrir
e traçar um caminho de paz é um desafio muito complexo, pois os
interesses em jogo, nas relações entre pessoas, comunidades e
nações, são múltiplos e contraditórios.
É
preciso, antes de mais nada, fazer apelo à consciência moral e à
vontade pessoal e política.
Com
efeito, a paz alcança-se no mais fundo do coração humano, e a
vontade política deve ser incessantemente revigorada para abrir
novos processos que reconciliem e unam pessoas e comunidades.
O
mundo não precisa de palavras vazias, mas de testemunhas convictas,
artesãos da paz abertos ao diálogo sem exclusões nem manipulações.
De
facto, só se pode chegar verdadeiramente à paz quando houver um
convicto diálogo de homens e mulheres que buscam a verdade mais além
das ideologias e das diferentes opiniões.
A
paz é uma construção que «deve estar constantemente a ser
edificada»[5], um caminho que percorremos juntos procurando sempre o
bem comum e comprometendo-nos a manter a palavra dada e a respeitar o
direito.
Na
escuta mútua, podem crescer também o conhecimento e a estima do
outro, até ao ponto de reconhecer no inimigo o rosto dum irmão.
Por
conseguinte, o processo de paz é um empenho que se prolonga no
tempo.
É
um trabalho paciente de busca da verdade e da justiça, que honra a
memória das vítimas e abre, passo a passo, para uma esperança
comum, mais forte que a vingança.
Num
Estado de direito, a democracia pode ser um paradigma significativo
deste processo, se estiver baseada na justiça e no compromisso de
tutelar os direitos de cada um, especialmente se vulnerável ou
marginalizado, na busca contínua da verdade[6].
Trata-se
duma construção social em contínua elaboração, para a qual cada
um presta responsavelmente a própria contribuição, a todos os
níveis da comunidade local, nacional e mundial.
Como
assinalava o Papa São Paulo VI, «a dupla aspiração – à
igualdade e à participação – procura promover um tipo de
sociedade democrática. (...).
Isto,
de per si, já diz bem qual a importância de uma educação para a
vida em sociedade, em que, para além da informação sobre os
direitos de cada um, seja recordado também o seu necessário
correlativo: o reconhecimento dos deveres de cada um em relação aos
outros.
O
sentido e a prática do dever são, por sua vez, condicionados pelo
domínio de si mesmo, pela aceitação das responsabilidades e das
limitações impostas ao exercício da liberdade do indivíduo ou do
grupo»[7].
Pelo
contrário, a fractura entre os membros duma sociedade, o aumento das
desigualdades sociais e a recusa de empregar os meios para um
desenvolvimento humano integral colocam em perigo a prossecução do
bem comum.
Inversamente,
o trabalho paciente, baseado na força da palavra e da verdade, pode
despertar nas pessoas a capacidade de compaixão e solidariedade
criativa.
Na
nossa experiência cristã, fazemos constantemente memória de
Cristo, que deu a sua vida pela nossa reconciliação (cf. Rm
5, 6-11).
A
Igreja participa plenamente na busca duma ordem justa, continuando a
servir o bem comum e a alimentar a esperança da paz, através da
transmissão dos valores cristãos, do ensinamento moral e das obras
sociais e educacionais.
3.
A
paz, caminho de reconciliação na comunhão fraterna
A
Bíblia, particularmente através da palavra dos profetas, chama as
consciências e os povos à aliança de Deus com a humanidade.
Trata-se
de abandonar o desejo de dominar os outros e aprender a olhar-se
mutuamente como pessoas, como filhos de Deus, como irmãos.
O
outro nunca há-de ser circunscrito àquilo que pôde ter dito ou
feito, mas deve ser considerado pela promessa que traz em si mesmo.
Somente
escolhendo a senda do respeito é que será possível romper a
espiral da vingança e empreender o caminho da esperança.
Guia-nos
a passagem do Evangelho que reproduz o seguinte diálogo entre Pedro
e Jesus: «“Senhor, se o meu irmão me ofender, quantas vezes lhe
deverei perdoar? Até sete vezes?” Jesus respondeu: “Não te digo
até sete vezes, mas até setenta vezes sete”» (Mt
18, 21-22).
Este
caminho de reconciliação convida-nos a encontrar no mais fundo do
nosso coração a força do perdão e a capacidade de nos
reconhecermos como irmãos e irmãs.
Aprender
a viver no perdão aumenta a nossa capacidade de nos tornarmos
mulheres e homens de paz.
O
que é verdade em relação à paz na esfera social, é verdadeiro
também no campo político e económico, pois a questão da paz
permeia todas as dimensões da vida comunitária: nunca haverá paz
verdadeira, se não formos capazes de construir um sistema económico
mais justo.
Como
escreveu Bento XVI, «a vitória sobre o subdesenvolvimento exige que
se actue não só sobre a melhoria das transacções fundadas sobre o
intercâmbio, nem apenas sobre as transferências das estruturas
assistenciais de natureza pública, mas sobretudo sobre a progressiva
abertura, em contexto mundial, para formas de actividade económica
caracterizadas por quotas de gratuitidade e de comunhão»[8].
4.
A
paz, caminho de conversão ecológica
«Se
às vezes uma má compreensão dos nossos princípios nos levou a
justificar o abuso da natureza, ou o domínio despótico do ser
humano sobre a criação, ou as guerras, a injustiça e a violência,
nós, crentes, podemos reconhecer que então fomos infiéis ao
tesouro de sabedoria que devíamos guardar»[9].
Vendo
as consequências da nossa hostilidade contra os outros, da falta de
respeito pela casa comum e da exploração abusiva dos recursos
naturais – considerados como instrumentos úteis apenas para o
lucro de hoje, sem respeito pelas comunidades locais, pelo bem comum
e pela natureza –, precisamos duma conversão ecológica.
O
Sínodo recente sobre a Amazónia impele-nos a dirigir, de forma
renovada, o apelo em prol duma relação pacífica entre as
comunidades e a terra, entre o presente e a memória, entre as
experiências e as esperanças.
Este
caminho de reconciliação inclui também escuta e contemplação do
mundo que nos foi dado por Deus, para fazermos dele a nossa casa
comum.
De
facto, os recursos naturais, as numerosas formas de vida e a própria
Terra foram-nos confiados para ser «cultivados e guardados» (cf. Gn
2, 15) também para as gerações futuras, com a participação
responsável e diligente de cada um.
Além
disso, temos necessidade duma mudança nas convicções e na
perspectiva, que nos abra mais ao encontro com o outro e à recepção
do dom da criação, que reflecte a beleza e a sabedoria do seu
Artífice.
De
modo particular brotam daqui motivações profundas e um novo modo de
habitar na casa comum, de convivermos uns e outros com as próprias
diversidades, de celebrar e respeitar a vida recebida e partilhada,
de nos preocuparmos com condições e modelos de sociedade que
favoreçam o desabrochar e a permanência da vida no futuro, de
desenvolver o bem comum de toda a família humana.
Por
conseguinte a conversão ecológica, a que apelamos, leva-nos a uma
nova perspectiva sobre a vida, considerando a generosidade do Criador
que nos deu a Terra e nos chama à jubilosa sobriedade da partilha.
Esta
conversão deve ser entendida de maneira integral, como uma
transformação das relações que mantemos com as nossas irmãs e
irmãos, com os outros seres vivos, com a criação na sua riquíssima
variedade, com o Criador que é origem de toda a vida.
Para
o cristão, uma tal conversão exige «deixar emergir, nas relações
com o mundo que o rodeia, todas as consequências do encontro com
Jesus»[10].
5.
Obtém-se
tanto quanto se espera[11]
O
caminho da reconciliação requer paciência e confiança.
Não
se obtém a paz, se não a esperamos.
Trata-se,
antes de mais nada, de acreditar na possibilidade da paz, de crer que
o outro tem a mesma necessidade de paz que nós.
Nisto,
pode-nos inspirar o amor de Deus por cada um de nós, amor
libertador, ilimitado, gratuito, incansável.
O
medo é, frequentemente, fonte de conflito.
Por
isso, é importante ir além dos nossos temores humanos,
reconhecendo-nos filhos necessitados diante d’Aquele que nos ama e
espera por nós, como o Pai do filho pródigo (cf. Lc
15, 11-24).
A
cultura do encontro entre irmãos e irmãs rompe com a cultura da
ameaça.
Torna
cada encontro uma possibilidade e um dom do amor generoso de Deus.
Faz-nos
de guia para ultrapassarmos os limites dos nossos horizontes
estreitos, procurando sempre viver a fraternidade universal, como
filhos do único Pai celeste.
Para
os discípulos de Cristo, este caminho é apoiado também pelo
sacramento da Reconciliação, concedido pelo Senhor para a remissão
dos pecados dos baptizados.
Este
sacramento da Igreja, que renova as pessoas e as comunidades, convida
a manter o olhar fixo em Jesus, que reconciliou «todas as coisas,
pacificando pelo sangue da sua cruz, tanto as que estão na terra
como as que estão no céu» (Col
1, 20); e pede para depor toda a violência nos pensamentos, nas
palavras e nas obras quer para com o próximo quer para com a
criação.
A
graça de Deus Pai oferece-se como amor sem condições.
Recebido
o seu perdão, em Cristo, podemos colocar-nos a caminho para ir
oferecê-lo aos homens e mulheres do nosso tempo.
Dia
após dia, o Espírito Santo sugere-nos atitudes e palavras para nos
tornarmos artesãos de justiça e de paz.
Que
o Deus da paz nos abençoe e venha em nossa ajuda.
Que
Maria, Mãe do Príncipe da paz e Mãe de todos os povos da terra,
nos acompanhe e apoie, passo a passo, no caminho da reconciliação.
E
que toda a pessoa que vem a este mundo possa conhecer uma existência
de paz e desenvolver plenamente a promessa de amor e vida que traz em
si.
Vaticano,
8 de Dezembro de 2019.
Franciscus
[1]
Bento XVI, Carta enc. Spe
salvi,
30 de Novembro de 2007, 1.
[2]
Discurso sobre as armas nucleares, Nagasáqui – Parque «Atomic
Bomb Hypocenter», 24 de Novembro de 2019.
[3]
Cf. Francisco, Homilia em Lampedusa, 8 de Julho de 2013.
[4]
Francisco, Discurso sobre a Paz, Hiroxima – Memorial da Paz, 24 de
Novembro de 2019.
[5]
Conc. Ecum. Vat. II, Const.
past. Gaudium
et spes,
78.
[6]
Cf. Bento XVI, Discurso aos dirigentes e membros das Associações
Cristãs dos Trabalhadores Italianos (ACLI), 27 de Janeiro de 2006.
[7]
Carta ap. Octogesima
adveniens,
14 de Maio de 1971, 24.
[8]
Carta enc. Caritas
in veritate,
29 de Junho de 2009, 39.
[9]
Francisco, Carta enc. Laudato
si’,
24 de Maio de 2015, 200.
[10]
Ibid., 217.
[11]
Cf. São João da Cruz, Noite
Escura,
II, 21, 8.
Fontes:
Santa Sé; Notícias do Vaticano
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