(Tópicos
da “última aula” na Universidade Católica Portuguesa, Porto, 11
de junho de 2013)
1)
Quando frequentava o curso de História da Faculdade de Letras de
Lisboa (1968-1973), participava intensamente na vida eclesial da
altura, em especial no Escutismo e na paróquia. Vivendo o
pós-Concílio, era grande o sentimento de que o catolicismo de João
XXIII e Paulo VI coincidia com a expectativa humana mais essencial,
para os crentes e para todos os homens de boa vontade. E digo “mais
essencial”, porque me parecia que algumas propostas que convenciam
outros, não ultrapassavam o plano político e social mais imediato,
quanto a mim insuficiente para corresponder ao drama humano, de
qualquer tempo e circunstância. Posso acrescentar que foi este tipo
de sentimento e convicção que me levou depois a ingressar no
Seminário dos Olivais.
2) Mas
era essa mesma participação eclesial e a convicção que a
acompanhava que me faziam estranhar a ausência do factor católico na
generalidade das matérias históricas que me eram ministradas,
sobretudo na época moderna e contemporânea. Por um lado, a ausência
temática e, por outro, clara ou em surdina, a herança da crítica
oitocentista, na esteira das Causas da decadência dos povos
peninsulares, como as apresentara Antero.
Como
se fosse incontestável uma síntese deste género:
a) O
catolicismo confundira-se com o Antigo Regime e até com alguns dos
seus aspectos menos aceitáveis;b) Foi por isso cultural e institucionalmente combatido pelo liberalismo e pelo republicanismo, aos quais se opôs em permanente reacção, enquistando-se no seu núcleo clerical e rural, perdendo sucessivamente a generalidade da burguesia e do operariado, isto é, os sectores progressivos da sociedade;
c) Seria assim inelutável a secundarização e finalmente a superação do catolicismo como realidade consistente da vida nacional e internacional.
3)
Este tipo de reflexões e a sua contradita pela vivência católica
que mantinha, agora no Seminário e na Faculdade de Teologia,
levaram-me a privilegiar a História da Igreja como campo de estudo,
que, ainda discente, me fez também docente. De facto, o Professor
António Montes Moreira – que me orientaria depois no doutoramento
e foi bispo de Bragança-Miranda – confiou-me os temas portugueses
da História da Igreja que nos leccionava, abrindo-me assim a carreira
docente que hoje se encerra, quatro décadas depois. Também o
ambiente cultural desses anos pedia apresentações mais sólidas da
História da Igreja, para melhor nos compreendermos, crentes e
não-crentes, do passado para o futuro. Foi em resposta ao pedido dos
“professores de moral” que elaborei uma série de fichas
temáticas com o título de A Igreja no tempo, cuja primeira
edição é ainda dos anos setenta. Ao mesmo tempo que lecionava na
Faculdade de Teologia, dava pequenos cursos sistemáticos de História
da Igreja, especialmente a catequistas e formadores da fé, além de
outras intervenções dispersas.
4)
Para mim, porém, a questão maior persistia: - Fora puramente
reactiva a atitude cultural e prática do catolicismo nacional e
internacional desde o surto do liberalismo? Porém e assim sendo,
como se podiam compreender, não só a sua capacidade de resistir a
tantos e tão drásticos desafios, mas também a potencialidade que
mantinha para se recompor e mesmo para converter religiosamente e
entusiasmar militantemente um número considerável de pessoas e em
gerações sucessivas? A esta questão responderam-me alguns
trabalhos então aparecidos sobre o catolicismo português dos
séculos XIX e XX, designadamente de Pinharanda Gomes e Manuel Braga
da Cruz. Neles via desfilar nomes, famílias e iniciativas que, desde
os anos trinta do século XIX, se tinham de algum modo interligado –
ainda que não univocamente – naquilo a que já nesse século se
chamara o “movimento católico”. O termo não é exclusivo de
Portugal, mas aplica-se a tudo quanto tentou relançar o catolicismo
no quadro político-cultural do liberalismo, incluindo alguns dos
seus aspectos vivenciais (protagonismo individual, liberdade
associativa, etc.) e projectando o Evangelho numa sociedade
crescentemente plural.
5) Foi
assim que, enquanto na leccionação de História da Igreja
Contemporânea dei redobrada atenção a esta temática - seguindo,
por exemplo, os debates internos do catolicismo oitocentista,
sobretudo latino, em torno de católicos liberais e legitimistas -,
na investigação pessoal e nalguns seminários comecei a acompanhar
figuras e iniciativas que a pontualizaram entre nós e procuraram
reafirmar a virtualidade católica para um Portugal “regenerado”
ou “moderno”. Coincidi aqui com idênticas preocupações de
outros investigadores, provindos também da Faculdade de Letras de
Lisboa, como António Matos Ferreira e Paulo Fontes, que, com outros
estudiosos, relançaram nos anos oitenta o Centro de Estudos de
História Religiosa (antes Eclesiástica) e a revista Lusitania
Sacra.
6) Os
estudos que dediquei ao Movimento Católico em Portugal foram depois
reunidos (já em 2002) na colectânea intitulada Igreja e sociedade
portuguesa do liberalismo à república (reeditada com mais
alguns textos em 2012). A tese de doutoramento, em 1992, estudou a
primeira tentativa de organização geral desse mesmo “movimento”,
protagonizada em 1843 e seguintes pela Sociedade Católica
Promotora da Moral Evangélica na Monarquia Portuguesa, tão
ambiciosa no desígnio e na teorização dum apostolado com forte
participação laical, como efémera na duração e escassa nos
resultados imediatos. Fosse como fosse, permitiu-me a seguinte
conclusão: «O essencial estava apurado: a partir de 1843, houve
sempre no catolicismo português quem compreendesse que a um mundo
que se autonomizava em relação à Igreja tinha de responder uma
reevangelização autonomizada em relação às opções políticas
particulares; e que os meios laicizados requeriam uma militância
mais repartida pelo conjunto dos crentes». Da investigação
dedicada à temática da recomposição do catolicismo português
durante o liberalismo, deixei uma resenha no capítulo que lhe
dediquei no terceiro volume da História Religiosa de Portugal
(Círculo de Leitores, 2002), com o título A vitalidade religiosa
do catolicismo português do liberalismo à república.
7) Foi
essencialmente assim o meu percurso docente na Universidade Católica
Portuguesa, ainda que diversificado noutras temáticas que abrangeram
várias matérias e a História da Igreja no seu conjunto, como o
curso de História da Igreja em Portugal que ministrei no Porto de
2007 até agora. Mas o que mais sublinho, pessoalmente falando, é o
facto deste percurso docente se entrelaçar com a preocupação
profunda de compreender o catolicismo português contemporâneo, para
o poder protagonizar adequadamente no serviço eclesial que me tem
sido cometido. Ou seja, estudo para agir, numa acção que sempre me
exige estudo. Ou ainda, a realidade da Igreja e do mundo pedem-me
respeito pela respectiva verdade e exigem-me verdade na resposta que
lhes dê. Foi precisamente neste ponto que quarenta anos de discência
e docência na Universidade Católica Portuguesa me proporcionaram,
entre professores e alunos, um campo permanente de pesquisa e
resposta, de didáctica exigente e convivência estimulante. É por
isso também que este momento se exprime num profundo e imenso “muito
obrigado” a todos vós.
Manuel
Clemente
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