"Este
é o tempo da misericórdia":
reitera o Papa na Carta Apostólica "Misericordia et misera", publicada na conclusão do Jubileu
reitera o Papa na Carta Apostólica "Misericordia et misera", publicada na conclusão do Jubileu
A
Carta Apostólica é dividida em 22 pontos e começa com a explicação
do título: misericórdia
e mísera são as duas
palavras que Santo Agostinho utiliza para descrever o encontro de
Jesus com a adúltera.
Em
primeiro lugar, o Papa Francisco aponta a celebração da
misericórdia através da missa.
Dirigindo-se
aos sacerdotes de modo especial, o Papa recomenda a preparação da
homilia e o cuidado na sua proclamação.
O
Pontífice dedica amplo espaço na Carta Apostólica para falar do
sacramento da Reconciliação, “que
precisa voltar a ter o seu lugar central na vida cristã”.
Aos
confessores, o Papa pediu acolhimento, disponibilidade, generosidade
e clarividência.
A
partir de agora, o Pontífice concede a todos os sacerdotes a
faculdade de absolver a todas as pessoas que incorreram no pecado do
aborto.
“Aquilo
que eu concedera de forma limitada ao período jubilar fica agora
alargado no tempo, não obstante qualquer disposição em contrário.
Quero
reiterar com todas as minhas forças que o aborto é um grave pecado,
porque põe fim a uma vida inocente; mas, com igual força, posso e
devo afirmar que não existe algum pecado que a misericórdia de Deus
não possa alcançar e destruir, quando encontra um coração
arrependido que pede para se reconciliar com o Pai.
Portanto,
cada sacerdote faça-se guia, apoio e conforto no acompanhamento dos
penitentes neste caminho de especial reconciliação.”
O
Papa fala ainda da importância da consolação, principalmente na
família e no momento da morte, mas é à caridade que dedica outra
grande parte da Carta Apostólica.
O
Papa cita algumas iniciativas deste Ano Jubilar, como as
sextas-feiras da misericórdia, para agradecer aos inúmeros
voluntários que dedicam seu tempo ao próximo.
Mas
para incrementar essas iniciativas, o Pontífice pede que se
“arregace as mangas”, com imaginação e criatividade.
No
final da Carta Apostólica, como mais um sinal concreto deste Ano
Santo Extraordinário o Pontífice institui para toda a Igreja o Dia
Mundial dos Pobres, a ser celebrado no XXXIII Domingo do Tempo Comum.
“Será
a mais digna preparação para bem viver a solenidade de Nosso Senhor
Jesus Cristo Rei do Universo, que Se identificou com os mais pequenos
e os pobres.
Será
um Dia que vai ajudar as comunidades e cada baptizado a reflectir
como a pobreza está no âmago do Evangelho e tomar consciência de
que não poderá haver justiça nem paz social enquanto Lázaro jazer
à porta da nossa casa.
Além
disso este Dia constituirá uma forma genuína de nova
evangelização.”
O
Texto integral:
CARTA
APOSTÓLICA
MISERICORDIA
ET MISERA
DO
SANTO PADRE
FRANCISCO
NO
TERMO DO JUBILEU EXTRAORDINÁRIO DA MISERICÓRDIA
FRANCISCO
a
quantos lerem esta Carta Apostólica
misericórdia
e paz!
MISERICÓRDIA
E MÍSERA (misericordia
et misera)
são as duas palavras que Santo Agostinho utiliza para descrever o
encontro de Jesus com a adúltera (cf. Jo 8, 1-11).
Não
podia encontrar expressão mais bela e coerente do que esta, para
fazer compreender o mistério do amor de Deus quando vem ao encontro
do pecador: «Ficaram apenas eles dois: a mísera e a
misericórdia».[1]
Quanta
piedade e justiça divina nesta narração!
O
seu ensinamento, ao mesmo tempo que ilumina a conclusão do Jubileu
Extraordinário da Misericórdia, indica o caminho que somos chamados
a percorrer no futuro.
1.
Esta página do Evangelho pode, com justa razão, ser considerada
como ícone de tudo o que celebramos no Ano Santo, um tempo rico em
misericórdia, a qual pede para continuar a ser celebrada e vivida
nas nossas comunidades.
Com
efeito, a misericórdia não se pode reduzir a um parêntese na vida
da Igreja, mas constitui a sua própria existência, que torna
visível e palpável a verdade profunda do Evangelho.
Tudo
se revela na misericórdia; tudo se compendia no amor misericordioso
do Pai.
Encontraram-se
uma mulher e Jesus: ela, adúltera e – segundo a Lei – julgada
passível de lapidação; Ele que, com a sua pregação e o dom total
de Si mesmo que O levará até à cruz, reconduziu a lei mosaica ao
seu intento originário genuíno.
No
centro, não temos a lei e a justiça legal, mas o amor de Deus, que
sabe ler no coração de cada pessoa incluindo o seu desejo mais
oculto e que deve ter a primazia sobre tudo.
Entretanto,
nesta narração evangélica, não se encontram o pecado e o juízo
em abstracto, mas uma pecadora e o Salvador.
Jesus
fixou nos olhos aquela mulher e leu no seu coração: lá encontrou o
desejo de ser compreendida, perdoada e libertada.
A
miséria do pecado foi revestida pela misericórdia do amor.
Da
parte de Jesus, nenhum juízo que não estivesse repassado de piedade
e compaixão pela condição da pecadora.
A
quem pretendia julgá-la e condená-la à morte, Jesus responde com
um longo silêncio, cujo intuito é deixar emergir a voz de Deus
tanto na consciência da mulher como nas dos seus acusadores.
Estes
deixam cair as pedras das mãos e vão-se embora um a um (cf. Jo 8,
9).
E,
depois daquele silêncio, Jesus diz: «Mulher, onde estão eles?
Ninguém te condenou? (...) Também Eu não te condeno.
Vai
e de agora em diante não tornes a pecar» (8, 10.11).
Desta
forma, ajuda-a a olhar para o futuro com esperança, pronta a
recomeçar a sua vida; a partir de agora, se quiser, poderá
«proceder no amor» (Ef 5, 2).
Depois
que se revestiu da misericórdia, embora permaneça a condição de
fraqueza por causa do pecado, tal condição é dominada pelo amor
que consente de olhar mais além e viver de maneira diferente.
2.
Aliás Jesus ensinara-o claramente quando, em casa dum fariseu que O
convidara para almoçar, se aproximou d’Ele uma mulher conhecida
por todos como pecadora (cf. Lc 7, 36-50).
Esta
ungira com perfume os pés de Jesus, banhara-os com as suas lágrimas
e enxugara-os com os seus cabelos (cf. 7, 37-38).
À
reacção escandalizada do fariseu, Jesus retorquiu: «São perdoados
os seus muitos pecados, porque muito amou; mas àquele a quem pouco
se perdoa, pouco ama» (7, 47).
O
perdão é o sinal mais visível do amor do Pai, que Jesus
quis revelar em toda a sua vida.
Não
há página do Evangelho que possa ser subtraída a este imperativo
do amor que chega até ao perdão.
Até
nos últimos momentos da sua existência terrena, ao ser pregado na
cruz, Jesus tem palavras de perdão: «Perdoa-lhes, Pai, porque não
sabem o que fazem» (Lc 23, 34).
Nada
que um pecador arrependido coloque diante da misericórdia de Deus
pode ficar sem o abraço do seu perdão.
É
por este motivo que nenhum de nós pode pôr condições à
misericórdia; esta permanece sempre um acto de gratuitidade do Pai
celeste, um amor incondicional e não merecido.
Por
isso, não podemos correr o risco de nos opor à plena liberdade do
amor com que Deus entra na vida de cada pessoa.
A
misericórdia é esta acção concreta do amor que, perdoando,
transforma e muda a vida.
É
assim que se manifesta o seu mistério divino.
Deus
é misericordioso (cf. Ex 34, 6), a sua misericórdia é eterna (cf.
Sal 136/135), de geração em geração abraça cada pessoa que
confia n’Ele e transforma-a, dando-lhe a sua própria vida.
3.
Quanta alegria brotou no coração destas duas mulheres: a adúltera
e a pecadora!
O
perdão fê-las sentirem-se, finalmente, livres e felizes como nunca
antes.
As
lágrimas da vergonha e do sofrimento transformaram-se no sorriso de
quem sabe que é amado.
A
misericórdia suscita alegria, porque o coração se abre à
esperança duma vida nova.
A
alegria do perdão é indescritível, mas transparece em nós sempre
que a experimentamos.
Na
sua origem, está o amor com que Deus vem ao nosso encontro, rompendo
o círculo de egoísmo que nos envolve, para fazer também de nós
instrumentos de misericórdia.
Como
são significativas, também para nós, estas palavras antigas que
guiavam os primeiros cristãos: «Reveste-te de alegria, que é
sempre agradável a Deus e por Ele bem acolhida. Todo o homem alegre
trabalha bem, pensa bem e despreza a tristeza. (...) Viverão em Deus
todas as pessoas que afastam a tristeza e se revestem de toda a
alegria».[2]
Experimentar
a misericórdia dá alegria; não no-la deixemos roubar pelas várias
aflições e preocupações.
Que
ela permaneça bem enraizada no nosso coração e sempre nos faça
olhar com serenidade a vida do dia-a-dia.
Numa
cultura frequentemente dominada pela tecnologia, parecem
multiplicar-se as formas de tristeza e solidão em que caem as
pessoas, incluindo muitos jovens.
Com
efeito, o futuro parece estar refém da incerteza, que não permite
ter estabilidade.
É
assim que muitas vezes surgem sentimentos de melancolia, tristeza e
tédio, que podem, pouco a pouco, levar ao desespero.
Há
necessidade de testemunhas de esperança e de alegria verdadeira,
para expulsar as quimeras que prometem uma felicidade fácil com
paraísos artificiais.
O
vazio profundo de tanta gente pode ser preenchido pela esperança que
trazemos no coração e pela alegria que brota dela.
Há
tanta necessidade de reconhecer a alegria que se revela no coração
tocado pela misericórdia!
Por
isso guardemos como um tesouro estas palavras do Apóstolo:
«Alegrai-vos sempre no Senhor!» (Flp 4, 4; cf. 1 Ts 5, 16).
4.
Celebramos um Ano intenso, durante o qual nos foi concedida, em
abundância, a graça da misericórdia.
Como
um vento impetuoso e salutar, a bondade e a misericórdia do Senhor
derramaram-se sobre o mundo inteiro.
E
perante este olhar amoroso de Deus, que se fixou de maneira tão
prolongada sobre cada um de nós, não se pode ficar indiferente,
porque muda a vida.
Antes
de mais nada, sentimos necessidade de agradecer ao Senhor,
dizendo-Lhe: «Vós abençoastes a vossa terra (…). Perdoastes as
culpas do vosso povo» (Sal 85/84, 2.3).
Foi
mesmo assim: Deus esmagou as nossas culpas e lançou ao fundo do mar
os nossos pecados (cf. Miq 7, 19); já não Se lembra deles,
lançou-os para trás de Si (cf. Is 38, 17); como o Oriente está
afastado do Ocidente, assim os nossos pecados estão longe d’Ele
(cf. Sal 103/102, 12).
Neste
Ano Santo, a Igreja pôde colocar-se à escuta e experimentou com
grande intensidade a presença e proximidade do Pai, que, por obra do
Espírito Santo, lhe tornou mais evidente o dom e o mandato de Jesus
Cristo relativo ao perdão.
Foi
realmente uma nova visita do Senhor ao meio de nós.
Sentimos
o seu sopro vital efundir-se sobre a Igreja, enquanto, mais uma vez,
as suas palavras indicavam a missão: «Recebei o Espírito Santo.
Àqueles
a quem perdoardes os pecados, ficarão perdoados; àqueles a quem os
retiverdes, ficarão retidos» (Jo 20, 22-23).
5.
Agora, concluído este Jubileu, é tempo de olhar para diante e
compreender como se pode continuar, com fidelidade, alegria e
entusiasmo, a experimentar a riqueza da misericórdia divina.
As
nossas comunidades serão capazes de permanecer vivas e dinâmicas na
obra da nova evangelização na medida em que a «conversão
pastoral», que estamos chamados a viver,[3] for plasmada dia após
dia pela força renovadora da misericórdia.
Não
limitemos a sua acção; não entristeçamos o Espírito que indica
sempre novas sendas a percorrer para levar a todos o Evangelho da
salvação.
Em
primeiro lugar, somos chamados a celebrar a misericórdia.
Quanta
riqueza está presente na oração da Igreja, quando invoca a Deus
como Pai misericordioso!
Na
liturgia, não só se evoca repetidamente a misericórdia, mas é
realmente recebida e vivida.
Desde
o início até ao fim da Celebração Eucarística, a
misericórdia reaparece várias vezes no diálogo entre a assembleia
orante e o coração do Pai, que rejubila quando pode derramar o seu
amor misericordioso.
Logo
na altura do pedido inicial de perdão com a invocação «Senhor,
tende piedade de nós», somos tranquilizados: «Deus todo-poderoso
tenha compaixão de nós, perdoe os nossos pecados e nos conduza à
vida eterna».
É
com esta confiança que a comunidade se reúne na presença do
Senhor, especialmente no dia semanal que recorda a ressurreição.
Muitas
orações ditas «colectas» procuram recordar-nos o grande dom da
misericórdia.
No
tempo da Quaresma, por exemplo, rezamos com estas palavras: «Deus,
Pai de misericórdia e fonte de toda a bondade, que nos fizestes
encontrar no jejum, na oração e no amor fraterno os remédios do
pecado, olhai benigno para a confissão da nossa humildade, de modo
que, abatidos pela consciência da culpa, sejamos confortados pela
vossa misericórdia».[4]
Mais
adiante, somos introduzidos na Oração Eucarística pelo Prefácio
que proclama: «Na vossa infinita misericórdia, de tal modo amastes
o mundo que nos enviastes Jesus Cristo, nosso Salvador, em tudo
semelhante ao homem, menos no pecado».[5]
Aliás
a própria Oração IV é um hino à misericórdia de Deus: «Na
vossa misericórdia, a todos socorrestes, para que todos aqueles que
Vos procuram Vos encontrem».[6]
«Tende
misericórdia de nós, Senhor»:[7] é a súplica premente que o
sacerdote faz na Oração Eucarística para implorar a participação
na vida eterna.
Depois
do Pai-Nosso, o sacerdote prolonga a oração invocando a paz e a
libertação do pecado, «ajudados pela vossa misericórdia» e,
antes da saudação da paz que os participantes trocam entre si como
expressão de fraternidade e amor mútuo à luz do perdão recebido,
o celebrante reza de novo: «Não olheis aos nossos pecados, mas à
fé da vossa Igreja».[8]
Através
destas palavras, pedimos com humilde confiança o dom da unidade e da
paz para a Santa Mãe Igreja.
Assim
a celebração da misericórdia divina culmina no Sacrifício
Eucarístico, memorial do mistério pascal de Cristo, do qual brota a
salvação para todo o ser humano, a história e o mundo inteiro.
Em
suma, cada momento da Celebração Eucarística faz referimento à
misericórdia de Deus.
Mas,
em toda a vida sacramental, é-nos dada com abundância a
misericórdia.
Realmente
é significativo que a Igreja tenha querido fazer explicitamente
apelo à misericórdia na fórmula dos dois sacramentos chamados «de
cura»: a Reconciliação e a Unção dos Enfermos.
Assim
reza a fórmula da absolvição: «Deus, Pai de misericórdia, que,
pela morte e ressurreição de seu Filho, reconciliou o mundo consigo
e infundiu o Espírito para a remissão dos pecados, te conceda, pelo
ministério da Igreja, o perdão e a paz»;[9] e ao ungir a pessoa
doente: «Por esta santa Unção e pela sua piíssima misericórdia,
o Senhor venha em teu auxílio com a graça do Espírito Santo».[10]
Deste
modo, a referência à misericórdia na oração da Igreja, longe de
ser apenas parenética, é altamente realizadora, ou seja,
enquanto a invocamos com fé, é-nos concedida; enquanto a
confessamos viva e real, efectivamente transforma-nos.
Este
é um conteúdo fundamental da nossa fé, que devemos conservar em
toda a sua originalidade: ainda antes e acima da revelação do
pecado, temos a revelação do amor com que Deus criou o mundo e os
seres humanos.
O
amor é o primeiro acto com que Deus Se deu a conhecer e vem ao nosso
encontro.
Por
isso mantenhamos o coração aberto à confiança de ser amados por
Deus.
O
seu amor sempre nos precede, acompanha e permanece connosco, não
obstante o nosso pecado.
6.
Neste contexto, assume significado particular também a escuta da
Palavra de Deus.
Cada
domingo, a Palavra de Deus é proclamada na comunidade cristã, para
que o Dia do Senhor seja iluminado pela luz que dimana do mistério
pascal.[11]
Na
Celebração Eucarística, é como se assistíssemos a um verdadeiro
diálogo entre Deus e o seu povo.
Com
efeito, na proclamação das Leituras bíblicas, repassa-se a
história da nossa salvação através da obra incessante de
misericórdia que é anunciada. Deus fala-nos ainda hoje como a
amigos, «convive» connosco[12] oferecendo-nos a sua companhia e
mostrando-nos a senda da vida.
A
sua Palavra faz-se intérprete dos nossos pedidos e preocupações e,
simultaneamente, resposta fecunda para podermos experimentar
concretamente a sua proximidade.
Quão
grande importância adquire a homilia, onde «a verdade anda
de mãos dadas com a beleza e o bem»,[13] para fazer vibrar o
coração dos crentes perante a grandeza da misericórdia!
Recomendo
vivamente a preparação da homilia e o cuidado na sua proclamação.
Será
tanto mais frutuosa quanto mais o sacerdote tiver experimentado em si
mesmo a bondade misericordiosa do Senhor.
Comunicar
a certeza de que Deus nos ama não é um exercício de retórica, mas
condição de credibilidade do próprio sacerdócio.
Por
conseguinte, viver a misericórdia é a via mestra para fazê-la
tornar-se um verdadeiro anúncio de consolação e conversão na vida
pastoral.
A
homilia, como também a catequese, precisam de ser sempre sustentadas
por este coração pulsante da vida cristã.
7.
A Bíblia é a grande narração que relata as maravilhas da
misericórdia de Deus.
Nela,
cada página está imbuída do amor do Pai, que, desde a criação,
quis imprimir no universo os sinais de seu amor.
O
Espírito Santo, através das palavras dos profetas e dos escritos
sapienciais, moldou a história de Israel no reconhecimento da
ternura e proximidade de Deus, não obstante a infidelidade do povo.
A
vida de Jesus e a sua pregação marcam, de forma determinante, a
história da comunidade cristã, que compreendeu a sua missão com
base no mandato que Cristo lhe confiou de ser instrumento permanente
da sua misericórdia e do seu perdão (cf. Jo 20, 23).
Através
da Sagrada Escritura, mantida viva pela fé da Igreja, o Senhor
continua a falar à sua Esposa, indicando-lhe as sendas a percorrer
para que o Evangelho da salvação chegue a todos.
É
meu vivo desejo que a Palavra de Deus seja cada vez mais celebrada,
conhecida e difundida, para que se possa, através dela, compreender
melhor o mistério de amor que dimana daquela fonte de misericórdia.
Claramente
no-lo recorda o Apóstolo: «Toda a Escritura é inspirada por Deus e
adequada para ensinar, refutar, corrigir e educar na justiça» (2 Tm
3, 16).
Seria
conveniente que cada comunidade pudesse, num domingo do Ano
Litúrgico, renovar o compromisso em prol da difusão, conhecimento e
aprofundamento da Sagrada Escritura: um domingo dedicado inteiramente
à Palavra de Deus, para compreender a riqueza inesgotável que
provém daquele diálogo constante de Deus com o seu povo.
Não
há-de faltar a criatividade para enriquecer o momento com
iniciativas que estimulem os crentes a ser instrumentos vivos de
transmissão da Palavra.
Entre
tais iniciativas, conta-se certamente uma difusão mais ampla da
lectio divina, para que, através da leitura orante do texto
sagrado, a vida espiritual encontre apoio e crescimento.
A
lectio divina sobre os temas da misericórdia consentirá de
verificar a grande fecundidade que deriva do texto sagrado, lido à
luz de toda a tradição espiritual da Igreja, que leva
necessariamente a gestos e obras concretas de caridade.[14]
8.
A celebração da misericórdia tem lugar, duma forma muito
particular, no sacramento da Reconciliação.
Este
é o momento em que sentimos o abraço do Pai, que vem ao nosso
encontro para nos restituir a graça de voltarmos a ser seus filhos.
Nós
somos pecadores e carregamos connosco o peso da contradição entre o
que quereríamos fazer e aquilo que, ao invés, acabamos
concretamente por fazer (cf. Rm 7, 14-21); mas a graça sempre nos
precede e assume o rosto da misericórdia que se torna eficaz na
reconciliação e no perdão.
Deus
faz-nos compreender o seu amor imenso precisamente à vista da nossa
realidade de pecadores.
A
graça é mais forte, e supera qualquer possível resistência,
porque o amor tudo vence (cf. 1 Cor 13, 7).
No
sacramento do Perdão, Deus mostra o caminho da conversão a Ele e
convida a experimentar de novo a sua proximidade.
É
um perdão que pode ser obtido, começando antes de mais nada a
viver a caridade.
Assim
no-lo recorda o apóstolo Pedro, quando escreve que «o amor cobre a
multidão dos pecados» (1 Ped 4, 8).
Só
Deus perdoa os pecados, mas também nos pede que estejamos prontos a
perdoar aos outros, como Ele perdoa a nós: «Perdoai-nos as nossas
ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido» (Mt 6,
12).
Como
é triste quando ficamos fechados em nós mesmos, incapazes de
perdoar!
Prevalecem
o ressentimento, a ira, a vingança, tornando a vida infeliz e
frustrando o jubiloso compromisso pela misericórdia.
9.
Uma experiência de graça que a Igreja viveu, com tanta eficácia,
no Ano Jubilar foi, certamente, o serviço dos Missionários da
Misericórdia.
A
sua acção pastoral pretendeu tornar evidente que Deus não põe
qualquer barreira a quantos O procuram de coração arrependido, mas
vai ao encontro de todos como um Pai.
Recebi
muitos testemunhos de alegria pelo renovado encontro com o Senhor no
sacramento da Confissão.
Não
percamos a oportunidade de viver a fé, inclusive como experiência
da reconciliação.
«Reconciliai-vos
com Deus» (2 Cor 5, 20): é o convite que ainda hoje dirige o
Apóstolo a cada crente para lhe fazer descobrir a força do amor que
o torna uma «nova criação» (2 Cor 5, 17).
Quero
expressar a minha gratidão a todos os Missionários da Misericórdia
pelo valioso serviço oferecido para tornar eficaz a graça do
perdão.
Mas
este ministério extraordinário não termina com o encerramento da
Porta Santa.
De
facto desejo que permaneça ainda, até novas ordens, como sinal
concreto de que a graça do Jubileu continua a ser viva e eficaz nas
várias partes do mundo.
Será
responsabilidade do Conselho Pontifício para a Promoção da Nova
Evangelização seguir, neste período, os Missionários da
Misericórdia, como expressão directa da minha solicitude e
proximidade e encontrar as formas mais coerentes para o exercício
deste precioso ministério.
10.
Aos sacerdotes, renovo o convite para se prepararem com grande
cuidado para o ministério da Confissão, que é uma verdadeira
missão sacerdotal.
Agradeço-vos
vivamente pelo vosso serviço e peço-vos para serdes acolhedores
com todos, testemunhas da ternura paterna não obstante a
gravidade do pecado, solícitos em ajudar a reflectir sobre o
mal cometido, claros ao apresentar os princípios morais,
disponíveis para acompanhar os fiéis no caminho penitencial
respeitando com paciência o seu passo, clarividentes no
discernimento de cada um dos casos, generosos na concessão do
perdão de Deus.
Como
Jesus, perante a adúltera, optou por permanecer em silêncio para a
salvar da condenação à morte, assim também o sacerdote no
confessionário seja magnânimo de coração, ciente de que cada
penitente lhe recorda a sua própria condição pessoal: pecador mas
ministro da misericórdia.
11.
Gostaria que todos nós meditássemos as palavras do Apóstolo,
escritas no final da sua vida, quando confessa a Timóteo ser o
primeiro dos pecadores, mas «justamente por isso alcancei
misericórdia» (1 Tm 1, 16).
As
suas palavras têm uma força que irrompe também em nós levando-nos
a reflectir sobre a nossa existência vendo em acção a misericórdia
de Deus na mudança, conversão e transformação do nosso coração:
«Dou graças Àquele que me conforta, Cristo Jesus Nosso Senhor, por
me ter considerado digno de confiança, pondo-me ao seu serviço, a
mim que antes fora blasfemo, perseguidor e violento. Mas alcancei
misericórdia» (1 Tm 1, 12-13).
Por
isso lembremos, com paixão pastoral sempre renovada, as palavras do
Apóstolo: «Tudo isto vem de Deus, que nos reconciliou consigo por
meio de Cristo e nos confiou o ministério da reconciliação» (2
Cor 5, 18).
Nós,
primeiro, fomos perdoados, tendo em vista este ministério;
tornamo-nos testemunhas em primeira mão da universalidade do perdão.
Não
há lei nem preceito que possa impedir a Deus de reabraçar o filho
que regressa a Ele reconhecendo que errou, mas decidido a começar de
novo.
Deter-se
apenas na lei equivale a invalidar a fé e a misericórdia divina.
Há
um valor preparatório na lei (cf. Gal 3, 24), cujo fim é o amor
(cf. 1 Tm 1, 5).
Mas
o cristão é chamado a viver a novidade do Evangelho, «a lei do
Espírito que dá vida em Cristo Jesus» (Rm 8, 2).
Mesmo
nos casos mais complexos, onde se é tentado a fazer prevalecer uma
justiça que deriva apenas das normas, deve-se crer na força que
brota da graça divina.
Nós,
confessores, temos experiência de muitas conversões que ocorrem
diante dos nossos olhos.
Sintamos,
portanto, a responsabilidade de gestos e palavras que possam chegar
ao fundo do coração do penitente, para que descubra a proximidade e
a ternura do Pai que perdoa.
Não
invalidemos estes momentos com comportamentos que possam contradizer
a experiência da misericórdia que se procura; mas, antes, ajudemos
a iluminar o espaço da consciência pessoal com o amor infinito de
Deus (cf. 1 Jo 3, 20).
O
sacramento da Reconciliação precisa de voltar a ter o seu lugar
central na vida cristã; para isso requerem-se sacerdotes que ponham
a sua vida ao serviço do «ministério da reconciliação» (2 Cor
5, 18), de tal modo que a ninguém sinceramente arrependido seja
impedido de aceder ao amor do Pai que espera o seu regresso e, ao
mesmo tempo, a todos seja oferecida a possibilidade de experimentar a
força libertadora do perdão.
Uma
ocasião propícia pode ser a celebração da iniciativa 24 horas
para o Senhor nas proximidades do IV domingo da Quaresma, que
goza já de amplo consenso nas dioceses e continua a ser um forte
apelo pastoral para viver intensamente o sacramento da Confissão.
12.
Em virtude desta exigência, para que nenhum obstáculo exista entre
o pedido de reconciliação e o perdão de Deus, concedo a partir de
agora a todos os sacerdotes, em virtude do seu ministério, a
faculdade de absolver a todas as pessoas que incorreram no pecado do
aborto.
Aquilo
que eu concedera de forma limitada ao período jubilar[15] fica agora
alargado no tempo, não obstante qualquer disposição em contrário.
Quero
reiterar com todas as minhas forças que o aborto é um grave pecado,
porque põe fim a uma vida inocente; mas, com igual força, posso e
devo afirmar que não existe algum pecado que a misericórdia de Deus
não possa alcançar e destruir, quando encontra um coração
arrependido que pede para se reconciliar com o Pai.
Portanto,
cada sacerdote faça-se guia, apoio e conforto no acompanhamento dos
penitentes neste caminho de especial reconciliação.
No
Ano do Jubileu, aos fiéis que por variados motivos frequentam as
igrejas oficiadas pelos sacerdotes da Fraternidade de São Pio X,
tinha-lhes concedido receber válida e licitamente a absolvição
sacramental dos seus pecados.[16]
Para
o bem pastoral destes fiéis e confiando na boa vontade dos seus
sacerdotes para que se possa recuperar, com a ajuda de Deus, a plena
comunhão na Igreja Católica, estabeleço por minha própria decisão
de estender esta faculdade para além do período jubilar, até novas
disposições sobre o assunto, a fim de que a ninguém falte jamais o
sinal sacramental da reconciliação através do perdão da Igreja.
13.
A misericórdia possui também o rosto da consolação.
«Consolai,
consolai o meu povo» (Is 40, 1): são as palavras sinceras que o
profeta faz ouvir ainda hoje, para que possa chegar uma palavra de
esperança a quantos estão no sofrimento e na aflição.
Nunca
deixemos que nos roubem a esperança que provém da fé no Senhor
ressuscitado.
É
verdade que muitas vezes somos sujeitos a dura prova, mas não deve
jamais esmorecer a certeza de que o Senhor nos ama.
A
sua misericórdia expressa-se também na proximidade, no carinho e no
apoio que muitos irmãos e irmãs podem oferecer quando sobrevêm os
dias da tristeza e da aflição.
Enxugar
as lágrimas é uma acção concreta que rompe o círculo de solidão
onde muitas vezes se fica encerrado.
Todos
precisamos de consolação, porque ninguém está imune do
sofrimento, da tribulação e da incompreensão.
Quanta
dor pode causar uma palavra maldosa, fruto da inveja, do ciúme e da
ira!
Quanto
sofrimento provoca a experiência da traição, da violência e do
abandono!
Quanta
amargura perante a morte das pessoas queridas!
E,
todavia, Deus nunca está longe quando se vivem estes dramas.
Uma
palavra que anima, um abraço que te faz sentir compreendido, uma
carícia que deixa perceber o amor, uma oração que permite ser mais
forte... são todas expressões da proximidade de Deus através da
consolação oferecida pelos irmãos.
Às
vezes, poderá ser de grande ajuda também o silêncio; porque em
certas ocasiões não há palavras para responder às perguntas de
quem sofre.
Mas,
à falta da palavra, pode suprir a compaixão de quem está presente,
próximo, ama e estende a mão.
Não
é verdade que o silêncio seja um acto de rendição; pelo
contrário, é um momento de força e de amor.
O
próprio silêncio pertence à nossa linguagem de consolação,
porque se transforma num gesto concreto de partilha e participação
no sofrimento do irmão.
14.
Num momento particular como o nosso que, entre muitas crises, regista
também a da família, é importante fazer chegar uma palavra de
força consoladora às nossas famílias.
O
dom do matrimónio é uma grande vocação, que se há de viver, com
a graça de Cristo, no amor generoso, fiel e paciente.
A
beleza da família permanece inalterada, apesar de tantas sombras e
propostas alternativas: «a alegria do amor que se vive nas famílias
é também o júbilo da Igreja».[17]
A
senda da vida que leva um homem e uma mulher a encontrarem-se,
amarem-se e prometerem reciprocamente, diante de Deus, uma fidelidade
para sempre, é muitas vezes interrompida pelo sofrimento, a traição
e a solidão.
A
alegria pelo dom dos filhos não está imune das preocupações
sentidas pelos pais com o seu crescimento e formação, com um futuro
digno de ser vivido intensamente.
A
graça do sacramento do Matrimónio não só fortalece a família,
para que seja o lugar privilegiado onde se vive a misericórdia, mas
também compromete a comunidade cristã e toda a actividade pastoral
para pôr em realce o grande valor propositivo da família.
Por
isso, este Ano Jubilar não pode perder de vista a complexidade da
realidade familiar actual.
A
experiência da misericórdia torna-nos capazes de encarar todas as
dificuldades humanas com a atitude do amor de Deus, que não Se cansa
de acolher e acompanhar.[18]
Não
podemos esquecer que cada um traz consigo a riqueza e o peso da sua
própria história, que nos distingue de qualquer outra pessoa.
A
nossa vida, com as suas alegrias e os seus sofrimentos, é algo único
e irrepetível que se desenrola sob o olhar misericordioso de Deus.
Isto
requer, sobretudo por parte do sacerdote, um discernimento espiritual
atento, profundo e clarividente, para que toda a pessoa sem excepção,
em qualquer situação que viva, possa sentir-se concretamente
acolhida por Deus, participar activamente na vida da comunidade e
estar inserida naquele Povo de Deus que incansavelmente caminha para
a plenitude do reino de Deus, reino de justiça, de amor, de perdão
e de misericórdia.
15.
Reveste-se de particular importância o momento da morte.
A
Igreja viveu sempre esta dramática passagem à luz da ressurreição
de Jesus Cristo, que abriu a estrada para a certeza da vida futura.
Temos
aqui um grande desafio a abraçar, sobretudo na cultura contemporânea
que, muitas vezes, tende a banalizar a morte até reduzi-la a simples
ficção ou a ocultá-la.
Ao
contrário, a morte há de ser enfrentada e preparada como uma
passagem que, embora dolorosa e inevitável, é cheia de sentido: o
acto extremo de amor para com as pessoas que se deixam e para com
Deus a cujo encontro se vai.
Em
todas as religiões, o momento da morte – como aliás o do
nascimento – é acompanhado por uma presença religiosa.
Nós
vivemos a experiência das exéquias como uma oração cheia
de esperança para a alma da pessoa falecida e para dar consolação
àqueles que sofrem a separação da pessoa amada.
Estou
convencido de que há necessidade, na pastoral animada por uma fé
viva, de tornar palpável como os sinais litúrgicos e as nossas
orações são expressão da misericórdia do Senhor.
É
Ele próprio que oferece palavras de esperança, porque nada nem
ninguém poderá separar-nos jamais do seu amor (cf. Rm 8, 35.38-39).
A
partilha deste momento pelo sacerdote é um acompanhamento
importante, porque lhe permite viver a proximidade à comunidade
cristã no momento de fraqueza, solidão, incerteza e pranto.
16.
Termina o Jubileu e fecha-se a Porta Santa.
Mas
a porta da misericórdia do nosso coração permanece sempre aberta
de par em par.
Aprendemos
que Deus Se inclina sobre nós (cf. Os 11, 4), para que também nós
possamos imitá-Lo inclinando-nos sobre os irmãos.
A
saudade que muitos sentem de regressar à casa do Pai, que aguarda a
sua chegada, é suscitada também por testemunhas sinceras e
generosas da ternura divina.
A
Porta Santa, que cruzamos neste Ano Jubilar, introduziu-nos no
caminho da caridade, que somos chamados a percorrer todos os
dias com fidelidade e alegria.
É
a estrada da misericórdia que torna possível encontrar tantos
irmãos e irmãs que estendem a mão para que alguém a possa agarrar
a fim de caminharem juntos.
Querer
estar perto de Cristo exige fazer-se próximo dos irmãos, porque
nada é mais agradável ao Pai do que um sinal concreto de
misericórdia.
Por
sua própria natureza, a misericórdia torna-se visível e palpável
numa acção concreta e dinâmica.
Uma
vez que se experimentou a misericórdia em toda a sua verdade, nunca
mais se volta atrás: cresce continuamente e transforma a vida.
É,
na verdade, uma nova criação que faz um coração novo, capaz de
amar plenamente, e purifica os olhos para reconhecerem as
necessidades mais ocultas.
Como
são verdadeiras as palavras com que a Igreja reza na Vigília
Pascal, depois da leitura da narração da criação: «Senhor nosso
Deus, que de modo admirável criastes o homem e de modo mais
admirável o redimistes…»![19]
A
misericórdia renova e redime, porque é o encontro de
dois corações: o de Deus que vem ao encontro do coração do homem.
Este
inflama-se e o primeiro cura-o: o coração de pedra fica
transformado em coração de carne (cf. Ez 36, 26), capaz de amar,
não obstante o seu pecado.
Nisto
se nota que somos verdadeiramente uma «nova criação» (Gal 6, 15):
sou amado, logo existo; estou perdoado, por conseguinte renasço para
uma vida nova; fui «misericordiado» e, consequentemente, feito
instrumento da misericórdia.
17.
Durante o Ano Santo, especialmente nas «sextas-feiras da
misericórdia», pude verificar concretamente a grande quantidade
de bem que existe no mundo.
Com
frequência, não é conhecido porque se realiza diariamente de forma
discreta e silenciosa.
Embora
não façam notícia, existem muitos sinais concretos de bondade e
ternura para com os mais humildes e indefesos, os que vivem mais
sozinhos e abandonados.
Há
verdadeiros protagonistas da caridade, que não deixam faltar a
solidariedade aos mais pobres e infelizes.
Agradecemos
ao Senhor por estes dons preciosos, que convidam a descobrir a
alegria de aproximar-se da humanidade ferida.
Com
gratidão, penso nos inúmeros voluntários que diariamente dedicam o
seu tempo a manifestar a presença e proximidade de Deus com a sua
entrega.
O
seu serviço é uma genuína obra de misericórdia, que ajuda muitas
pessoas a aproximar-se da Igreja.
18.
É a hora de dar espaço à imaginação a propósito da misericórdia
para dar vida a muitas obras novas, fruto da graça.
A
Igreja precisa de narrar hoje aqueles «muitos outros sinais» que
Jesus realizou e que «não estão escritos» (Jo 20, 30), de modo
que sejam expressão eloquente da fecundidade do amor de Cristo e da
comunidade que vive d’Ele.
Já
se passaram mais de dois mil anos, e todavia as obras de misericórdia
continuam a tornar visível a bondade de Deus.
Ainda
hoje populações inteiras padecem a fome e a sede, sendo grande a
preocupação suscitada pelas imagens de crianças que não têm nada
para se alimentar.
Multidões
de pessoas continuam a emigrar dum país para outro à procura de
alimento, trabalho, casa e paz.
A
doença, nas suas várias formas, é um motivo permanente de aflição
que requer ajuda, consolação e apoio.
Os
estabelecimentos prisionais são lugares onde muitas vezes, à pena
restritiva da liberdade, se juntam transtornos por vezes graves
devido às condições desumanas de vida.
O
analfabetismo ainda é muito difuso, impedindo aos meninos e meninas
de se formarem, expondo-os a novas formas de escravidão.
A
cultura do individualismo exacerbado, sobretudo no Ocidente, leva a
perder o sentido de solidariedade e responsabilidade para com os
outros.
O
próprio Deus continua a ser hoje um desconhecido para muitos; isto
constitui a maior pobreza e o maior obstáculo para o reconhecimento
da dignidade inviolável da vida humana.
Em
suma, as obras de misericórdia corporal e espiritual constituem até
aos nossos dias a verificação da grande e positiva incidência da
misericórdia como valor social.
Com
efeito, esta impele a arregaçar as mangas para restituir dignidade a
milhões de pessoas que são nossos irmãos e irmãs, chamados
connosco a construir uma «cidade fiável».[20]
19.
Muitos sinais concretos de misericórdia foram realizados durante
este Ano Santo.
Comunidades,
famílias e indivíduos crentes redescobriram a alegria da partilha e
a beleza da solidariedade.
Mas
não basta.
O
mundo continua a gerar novas formas de pobreza espiritual e material,
que comprometem a dignidade das pessoas.
É
por isso que a Igreja deve permanecer vigilante e pronta para
individuar novas obras de misericórdia e implementá-las com
generosidade e entusiasmo.
Assim,
ponhamos todo o esforço em dar formas concretas à caridade e, ao
mesmo tempo, entender melhor as obras de misericórdia.
Com
efeito, esta possui um efeito inclusivo pelo que tende a difundir-se
como uma nódoa de azeite e não conhece limites.
E,
neste sentido, somos chamados a dar um novo rosto às obras de
misericórdia que conhecemos desde sempre.
De
facto a misericórdia extravasa; vai sempre mais além, é fecunda.
É
como o fermento que faz levedar a massa (cf. Mt 13, 33), e como o
grão de mostarda que se transforma numa árvore (cf. Lc 13, 19).
A
título de exemplo, basta pensar na obra de misericórdia corporal
vestir quem está nu (cf. Mt 25, 36.38.43.44).
A
mesma nos reconduz aos primórdios, ao jardim do Éden, quando Adão
e Eva descobriram que estavam nus e, ouvindo aproximar-Se o Senhor,
tiveram vergonha e esconderam-se (cf. Gn 3, 7-8). Sabemos que o
Senhor castigou-os; no entanto, Ele «fez a Adão e à sua mulher
túnicas de peles e vestiu-os» (Gn 3, 21).
A
vergonha é superada e a dignidade restituída.
Fixemos
o olhar também em Jesus no Gólgota.
Na
cruz, o Filho de Deus está nu; a sua túnica foi sorteada e levada
pelos soldados (cf. Jo 19, 23-24); Ele não tem mais nada.
Na
cruz, manifesta-se ao máximo a partilha de Jesus com as pessoas que
perderam a dignidade, por terem sido privadas do necessário.
Assim
como a Igreja é chamada a ser a «túnica de Cristo»[21] para
revestir o seu Senhor, assim também ela se comprometeu a tornar-se
solidária com os nus da terra a fim de recuperarem a dignidade de
que foram despojados.
Assim
as palavras de Jesus – «estava nu e destes-me que vestir» (Mt 25,
36) – obrigam-nos a não desviar o olhar das novas formas de
pobreza e marginalização que impedem às pessoas de viverem com
dignidade.
Não
ter trabalho nem receber um salário justo, não poder ter uma casa
ou uma terra onde habitar, ser discriminados pela fé, a raça, a
posição social... estas e muitas outras são condições que
atentam contra a dignidade da pessoa; frente a elas, a acção
misericordiosa dos cristãos responde, antes de mais nada, com a
vigilância e a solidariedade.
Hoje
são tantas as situações em que podemos restituir dignidade às
pessoas, consentindo-lhes uma vida humana.
Basta
pensar em tantos meninos e meninas que sofrem violências de vários
tipos, que lhes roubam a alegria da vida.
Os
seus rostos tristes e desorientados permanecem impressos na minha
mente; pedem a nossa ajuda para serem libertados da escravidão do
mundo contemporâneo.
Estas
crianças são os jovens de amanhã; como estamos a prepará-las para
viverem com dignidade e responsabilidade?
Com
que esperança podem elas enfrentar o seu presente e o seu futuro?
O
carácter social da misericórdia exige que não
permaneçamos inertes mas afugentemos a indiferença e a hipocrisia
para que os planos e os projectos não fiquem letra morta.
Que
o Espírito Santo nos ajude a estar sempre prontos a prestar de forma
efectiva e desinteressada a nossa contribuição, para que a justiça
e uma vida digna não permaneçam meras palavras de circunstância,
mas sejam o compromisso concreto de quem pretende testemunhar a
presença do Reino de Deus.
20.
Somos chamados a fazer crescer uma cultura de misericórdia,
com base na redescoberta do encontro com os outros: uma cultura na
qual ninguém olhe para o outro com indiferença, nem vire a cara
quando vê o sofrimento dos irmãos.
As
obras de misericórdia são «artesanais»: nenhuma delas é
cópia da outra; as nossas mãos podem moldá-las de mil modos e,
embora seja único o Deus que as inspira e única a «matéria» de
que são feitas, ou seja, a própria misericórdia, cada uma adquire
uma forma distinta.
Com
efeito, as obras de misericórdia, tocam toda a vida duma pessoa.
Por
isso, temos possibilidade de criar uma verdadeira revolução
cultural precisamente a partir da simplicidade de gestos que podem
alcançar o corpo e o espírito, isto é, a vida das pessoas.
É
um compromisso que a comunidade cristã pode assumir, na certeza de
que a Palavra do Senhor não cessa de a chamar para sair da
indiferença e do individualismo em que somos tentados a fechar-nos
levando uma existência cómoda e sem problemas.
«Os
pobres, sempre os tendes convosco» (Jo 12, 8): disse Jesus aos seus
discípulos. Não há desculpa que possa justificar a incúria,
quando sabemos que Ele Se identificou com cada um deles.
A
cultura da misericórdia forma-se na oração assídua, na abertura
dócil à acção do Espírito, na familiaridade com a vida dos
Santos e na solidariedade concreta para com os pobres.
É
um convite premente para não se equivocar onde é determinante
comprometer-se.
A
tentação de se limitar a fazer a «teoria da misericórdia» é
superada na medida em que esta se faz vida diária de participação
e partilha.
Aliás,
nunca devemos esquecer as palavras com que o apóstolo Paulo – ao
contar o encontro depois da sua conversão com Pedro, Tiago e João –
põe em realce um aspecto essencial da sua missão e de toda a vida
cristã: «Só nos disseram que nos devíamos lembrar dos pobres –
o que procurei fazer com o maior empenho» (Gal 2, 10).
Não
podemos esquecer-nos dos pobres: trata-se dum convite hoje mais
actual do que nunca, que se impõe pela sua evidência evangélica.
21.
Que a experiência do Jubileu imprima em nós estas palavras do
apóstolo Pedro: outrora «não tínheis alcançado misericórdia e
agora alcançastes misericórdia» (1 Ped 2, 10).
Não
guardemos ciosamente só para nós tudo o que recebemos; saibamos
partilhá-lo com os irmãos atribulados, para que sejam sustentados
pela força da misericórdia do Pai.
As
nossas comunidades abram-se para alcançar a todas as pessoas que
vivem no seu território, para que chegue a todas a carícia de Deus
através do testemunho dos crentes.
Este
é o tempo da misericórdia.
Cada
dia da nossa caminhada é marcado pela presença de Deus, que guia os
nossos passos com a força da graça que o Espírito infunde no
coração para o plasmar e torná-lo capaz de amar.
É
o tempo da misericórdia para todos e cada um, para que ninguém
possa pensar que é alheio à proximidade de Deus e à força da sua
ternura.
É
o tempo da misericórdia para que quantos se sentem fracos e
indefesos, afastados e sozinhos possam individuar a presença de
irmãos e irmãs que os sustentam nas suas necessidades.
É
o tempo da misericórdia para que os pobres sintam pousado sobre
si o olhar respeitoso mas atento daqueles que, vencida a indiferença,
descobrem o essencial da vida.
É
o tempo da misericórdia para que cada pecador não se canse de
pedir perdão e sentir a mão do Pai, que sempre acolhe e abraça.
À
luz do «Jubileu das Pessoas Excluídas Socialmente», celebrado
quando já se iam fechando as Portas da Misericórdia em todas as
catedrais e santuários do mundo, intuí que, como mais um sinal
concreto deste Ano Santo extraordinário, se deve celebrar em toda a
Igreja, na ocorrência do XXXIII Domingo do Tempo Comum, o Dia
Mundial dos Pobres.
Será
a mais digna preparação para bem viver a solenidade de Nosso Senhor
Jesus Cristo Rei do Universo, que Se identificou com os mais pequenos
e os pobres e nos há de julgar sobre as obras de misericórdia (cf.
Mt 25, 31-46).
Será
um Dia que vai ajudar as comunidades e cada baptizado a reflectir
como a pobreza está no âmago do Evangelho e tomar consciência de
que não poderá haver justiça nem paz social enquanto Lázaro jazer
à porta da nossa casa (cf. Lc 16, 19-21).
Além
disso este Dia constituirá uma forma genuína de nova evangelização
(cf. Mt 11, 5), procurando renovar o rosto da Igreja na sua perene
acção de conversão pastoral para ser testemunha da misericórdia.
22.
Sobre nós permanecem pousados os olhos misericordiosos da Santa Mãe
de Deus.
Ela
é a primeira que abre a procissão e nos acompanha no testemunho do
amor.
A
Mãe da Misericórdia reúne a todos sob a protecção do seu manto,
como A quis frequentemente representar a arte.
Confiemos
na sua ajuda materna e sigamos a indicação perene que nos dá de
olhar para Jesus, rosto radiante da misericórdia de Deus.
Dado
em Roma, junto de São Pedro, em 20 de Novembro – Solenidade de
Cristo Rei – do Ano do Senhor de 2016, quarto do meu pontificado.
FRANCISCO
[1]
In Johannis33, 5.
[2]
HERMAS, O Pastor, 42, 1-4.
[3]
Cf. Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 27.
[4]
Missal Romano, III Domingo da Quaresma.
[5]
Ibid., Prefácio VII dos Domingos do Tempo Comum.
[6]
Ibid., Oração Eucarística IV.
[7]
Ibid., Oração Eucarística II.
[8]
Ibid., Ritos da Comunhão.
[9]
Ritual da Penitência, n. 46.
[10]
Ritual da Unção dos Enfermos, n. 76.
[11]
Cf. Concílio Ecuménico Vaticano II, Const. Sacrosanctum Concilium,
106.
[12]
Idem, Const. dogm. Dei Verbum, 2.
[13]
Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 142.
[14]
Cf. Bento XVI, Exort. ap. pós-sinodal Verbum Domini, 86-87.
[15]
Cf. Carta pela qual se concede a indulgência por ocasião do Jubileu
da Misericórdia, 1 de Setembro de 2015.
[16]
Cf. ibidem.
[17]
Francisco, Exort. ap. pós-sinodal Amoris laetitia, 1.
[18]
Cf. ibid., 291-300.
[19]
Missal Romano, Vigília Pascal, Oração depois da Primeira Leitura.
[20]
Bento XVI, Carta enc. Lumen fidei, 50.
[21]
Cipriano, A unidade da Igreja Católica, 7.
Fontes:
Santa Sé; Rádio Vaticano; L'Osservatore Romano
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