O
Papa pediu perdão pelos crimes cometidos por consagrados e clérigos
e invocou o compromisso da Igreja inteira para erradicar a cultura do
abuso
Com
«vergonha e arrependimento» o Papa reconheceu responsabilidades e
atrasos da Igreja em enfrentar os casos de abusos cometidos por
consagrados e clérigos contra menores.
«Negligenciamos
e abandonamos os pequenos» admitiu numa «carta ao povo de Deus»
publicada a 20 de Agosto, na qual pediu novamente perdão e invocou o
engajamento de toda a comunidade eclesial a fim de «erradicar a
cultura do abuso».
CARTA
DO PAPA FRANCISCO
AO
POVO DE DEUS
«Um
membro sofre? Todos os outros membros sofrem com ele» (1 Co 12, 26).
Estas
palavras de São Paulo ressoam com força no meu coração ao
constatar mais uma vez o sofrimento vivido por muitos menores por
causa de abusos sexuais, de poder e de consciência cometidos por um
número notável de clérigos e pessoas consagradas.
Um
crime que gera profundas feridas de dor e impotência, em primeiro
lugar nas vítimas, mas também em suas famílias e na inteira
comunidade, tanto entre os crentes como entre os não-crentes.
Olhando
para o passado, nunca será suficiente o que se faça para pedir
perdão e procurar reparar o dano causado.
Olhando
para o futuro, nunca será pouco tudo o que for feito para gerar uma
cultura capaz de evitar que essas situações não só não
aconteçam, mas que não encontrem espaços para serem ocultadas e
perpetuadas.
A
dor das vítimas e das suas famílias é também a nossa dor, por
isso é preciso reafirmar mais uma vez o nosso compromisso em
garantir a protecção de menores e de adultos em situações de
vulnerabilidade.
1.
Um membro sofre?
Nestes
últimos dias, um relatório foi divulgado detalhando aquilo que
vivenciaram pelo menos 1.000 sobreviventes, vítimas de abuso sexual,
de poder e de consciência, nas mãos de sacerdotes por
aproximadamente setenta anos.
Embora
seja possível dizer que a maioria dos casos corresponde ao passado,
contudo, ao longo do tempo, conhecemos a dor de muitas das vítimas e
constamos que as feridas nunca desaparecem e nos obrigam a condenar
veementemente essas atrocidades, bem como unir esforços para
erradicar essa cultura da morte; as feridas “nunca prescrevem”.
A
dor dessas vítimas é um gemido que clama ao céu, que alcança a
alma e que, por muito tempo, foi ignorado, emudecido ou silenciado.
Mas
seu grito foi mais forte do que todas as medidas que tentaram
silenciá-lo ou, inclusive, que procuraram resolvê-lo com decisões
que aumentaram a gravidade caindo na cumplicidade.
Clamor
que o Senhor ouviu, demonstrando, mais uma vez, de que lado Ele quer
estar.
O
cântico de Maria não se equivoca e continua a se sussurrar ao longo
da história, porque o Senhor se lembra da promessa que fez a nossos
pais: «dispersou os soberbos. Derrubou os poderosos de seus tronos e
exaltou os humildes. Aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu
de mãos vazias» (Lc 1, 51-53), e sentimos vergonha quando
percebemos que o nosso estilo de vida contradisse e contradiz aquilo
que proclamamos com a nossa voz.
Com
vergonha e arrependimento, como comunidade eclesial, assumimos que
não soubemos estar onde deveríamos estar, que não agimos a tempo
para reconhecer a dimensão e a gravidade do dano que estava sendo
causado em tantas vidas.
Nós
negligenciamos e abandonamos os pequenos.
Faço
minhas as palavras do então Cardeal Ratzinger quando, na Via Sacra
escrita para a Sexta-feira Santa de 2005, uniu-se ao grito de dor de
tantas vítimas, afirmando com força: «Quanta sujeira há na
Igreja, e precisamente entre aqueles que, no sacerdócio, deveriam
pertencer completamente a Ele! Quanta soberba, quanta
autossuficiência!... A traição dos discípulos, a recepção
indigna do seu Corpo e do seu Sangue é certamente o maior sofrimento
do Redentor, o que Lhe trespassa o coração. Nada mais podemos fazer
que dirigir-Lhe, do mais fundo da alma, este grito: Kyrie, eleison –
Senhor, salvai-nos (cf. Mt 8, 25)» (Nona Estação).
2.
Todos os outros membros sofrem com ele.
A
dimensão e a gravidade dos acontecimentos obrigam a assumir esse
facto de maneira global e comunitária.
Embora
seja importante e necessário em qualquer caminho de conversão tomar
conhecimento do que aconteceu, isso, em si, não basta.
Hoje,
como Povo de Deus, somos desafiados a assumir a dor de nossos irmãos
feridos na sua carne e no seu espírito.
Se
no passado a omissão pôde tornar-se uma forma de resposta, hoje
queremos que seja a solidariedade, entendida no seu sentido mais
profundo e desafiador, a tornar-se o nosso modo de fazer a história
do presente e do futuro, num âmbito onde os conflitos, tensões e,
especialmente, as vítimas de todo o tipo de abuso possam encontrar
uma mão estendida que as proteja e resgate da sua dor (cf. Exort.
ap. Evangelii gaudium, 228).
Essa
solidariedade exige que, por nossa vez, denunciemos tudo o que possa
comprometer a integridade de qualquer pessoa.
Uma
solidariedade que exige a luta contra todas as formas de corrupção,
especialmente a espiritual «porque trata-se duma cegueira cómoda e
autossuficiente, em que tudo acaba por parecer lícito: o engano, a
calúnia, o egoísmo e muitas formas subtis de autorreferencialidade,
já que “também Satanás se disfarça em anjo de luz” (2 Cor 11,
14)» (Exort. ap. Gaudete et exultate, 165).
O
apelo de Paulo para sofrer com quem sofre é o melhor antídoto
contra qualquer tentativa de continuar reproduzindo entre nós as
palavras de Caim: «Sou, porventura, o guardião do meu irmão?» (Gn
4, 9).
Reconheço
o esforço e o trabalho que são feitos em diferentes partes do mundo
para garantir e gerar as mediações necessárias que proporcionem
segurança e protejam a integridade de crianças e de adultos em
situação de vulnerabilidade, bem como a implementação da
“tolerância zero” e de modos de prestar contas por parte de
todos aqueles que realizem ou acobertem esses crimes.
Tardamos
em aplicar essas medidas e sanções tão necessárias, mas confio
que elas ajudarão a garantir uma maior cultura do cuidado no
presente e no futuro.
Juntamente
com esses esforços, é necessário que cada baptizado se sinta
envolvido na transformação eclesial e social de que tanto
necessitamos.
Tal
transformação exige conversão pessoal e comunitária, e nos leva
dirigir os olhos na mesma direcção do olhar do Senhor.
São
João Paulo II assim o dizia: «se verdadeiramente partimos da
contemplação de Cristo, devemos saber vê-Lo sobretudo no rosto
daqueles com quem Ele mesmo Se quis identificar» (Carta ap. Novo
millennio ineunte, 49).
Aprender
a olhar para onde o Senhor olha, estar onde o Senhor quer que
estejamos, converter o coração na Sua presença.
Para
isso nos ajudarão a oração e a penitência.
Convido
todo o Povo Santo fiel de Deus ao exercício penitencial da oração
e do jejum, seguindo o mandato do Senhor[1], que desperte a nossa
consciência, a nossa solidariedade e o compromisso com uma cultura
do cuidado e o “nunca mais” a qualquer tipo e forma de abuso.
É
impossível imaginar uma conversão do agir eclesial sem a
participação activa de todos os membros do Povo de Deus.
Além
disso, toda vez que tentamos suplantar, silenciar, ignorar, reduzir
em pequenas elites o povo de Deus, construímos comunidades, planos,
ênfases teológicas, espiritualidades e estruturas sem raízes, sem
memória, sem rostos, sem corpos, enfim, sem vidas[2].
Isto
manifesta-se claramente num modo anómalo de entender a autoridade na
Igreja - tão comum em muitas comunidades onde ocorreram as condutas
de abuso sexual, de poder e de consciência - como é o clericalismo,
aquela «atitude que não só anula a personalidade dos cristãos,
mas tende também a diminuir e a subestimar a graça baptismal que o
Espírito Santo pôs no coração do nosso povo»[3].
O
clericalismo, favorecido tanto pelos próprios sacerdotes como pelos
leigos, gera uma ruptura no corpo eclesial que beneficia e ajuda a
perpetuar muitos dos males que denunciamos hoje.
Dizer
não ao abuso, é dizer energicamente não a qualquer forma de
clericalismo.
É
sempre bom lembrar que o Senhor, «na história da salvação, salvou
um povo. Não há identidade plena, sem pertença a um povo. Por
isso, ninguém se salva sozinho, como indivíduo isolado, mas Deus
atrai-nos tendo em conta a complexa rede de relações interpessoais
que se estabelecem na comunidade humana: Deus quis entrar numa
dinâmica popular, na dinâmica dum povo» (Exort. ap. Gaudete et
exultate, 6).
Portanto,
a única maneira de respondermos a esse mal que prejudicou tantas
vidas é vivê-lo como uma tarefa que nos envolve e corresponde a
todos como Povo de Deus.
Essa
consciência de nos sentirmos parte de um povo e de uma história
comum permitirá-nos reconhecer nossos pecados e erros do passado com
uma abertura penitencial capaz de se deixar renovar a partir de
dentro.
Tudo
o que for feito para erradicar a cultura do abuso em nossas
comunidades, sem a participação activa de todos os membros da
Igreja, não será capaz de gerar as dinâmicas necessárias para uma
transformação saudável e realista.
A
dimensão penitencial do jejum e da oração ajudar-nos-á, como Povo
de Deus, a colocar-nos diante do Senhor e de nossos irmãos feridos,
como pecadores que imploram o perdão e a graça da vergonha e da
conversão e, assim, podermos elaborar acções que criem dinâmicas
em sintonia com o Evangelho.
Porque
«sempre que procuramos voltar à fonte e recuperar o frescor
original do Evangelho, despontam novas estradas, métodos criativos,
outras formas de expressão, sinais mais eloquentes, palavras cheias
de renovado significado para o mundo actual» (Exort. ap.
Evangelii gaudium, 11).
É
imperativo que nós, como Igreja, possamos reconhecer e condenar, com
dor e vergonha, as atrocidades cometidas por pessoas consagradas,
clérigos, e inclusive por todos aqueles que tinham a missão de
assistir e cuidar dos mais vulneráveis.
Peçamos
perdão pelos pecados, nossos e dos outros.
A
consciência do pecado nos ajuda a reconhecer os erros, delitos e
feridas geradas no passado e permite nos abrir e nos comprometer mais
com o presente num caminho de conversão renovada.
Da
mesma forma, a penitência e a oração nos ajudarão a sensibilizar
os nossos olhos e os nossos corações para o sofrimento alheio e a
superar o afã de domínio e controle que muitas vezes se torna a
raiz desses males.
Que
o jejum e a oração despertem os nossos ouvidos para a dor
silenciada em crianças, jovens e pessoas com necessidades especiais.
Jejum
que nos dá fome e sede de justiça e nos encoraja a caminhar na
verdade, dando apoio a todas as medidas judiciais que sejam
necessárias.
Um
jejum que nos sacuda e nos leve ao compromisso com a verdade e na
caridade com todos os homens de boa vontade e com a sociedade em
geral, para lutar contra qualquer tipo de abuso de poder, sexual e de
consciência.
Desta
forma, poderemos tornar transparente a vocação para a qual fomos
chamados a ser «um sinal e instrumento da íntima união com Deus e
da unidade de todo o género humano» (Conc. Ecum. Vat. II, Lumen
gentium, 1).
«Um
membro sofre? Todos os outros membros sofrem com ele», disse-nos São
Paulo.
Através
da atitude de oração e penitência, poderemos entrar em sintonia
pessoal e comunitária com essa exortação, para que cresça em nós
o dom da compaixão, justiça, prevenção e reparação.
Maria
soube estar ao pé da cruz de seu Filho.
Não
o fez de uma maneira qualquer, mas permaneceu firme de pé e ao seu
lado.
Com
essa postura, Ela manifesta o seu modo de estar na vida.
Quando
experimentamos a desolação que nos produz essas chagas eclesiais,
com Maria nos fará bem «insistir mais na oração» (cf. S.
Inácio de Loiola, Exercícios Espirituais, 319), procurando
crescer mais no amor e na fidelidade à Igreja.
Ela,
a primeira discípula, nos ensina a todos os discípulos como somos
convidados a enfrentar o sofrimento do inocente, sem evasões ou
pusilanimidade.
Olhar
para Maria é aprender a descobrir onde e como o discípulo de Cristo
deve estar.
Que
o Espírito Santo nos dê a graça da conversão e da unção
interior para poder expressar, diante desses crimes de abuso, a nossa
compunção e a nossa decisão de lutar com coragem.
Francisco
Cidade
do Vaticano, 20 de Agosto de 2018.
[1]
«Esta espécie de demónios não se expulsa senão à força de
oração e de jejum» Mt 17, 21.
[2]
Cf. Carta do Santo Padre Francisco ao Povo de Deus que peregrina no
Chile, 31 de Maio de 2018.
[3]
Carta do Papa Francisco ao Cardeal Marc Ouellet, Presidente da
Pontifícia Comissão para a América Latina, 19 de Março de 2018.
Fontes:
Santa Sé; L’Osservatore Romano
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