Lembro que a reflexão incide sobre “Os desafios pastorais da família no contexto da evangelização”, não se detendo em alguns temas que têm polarizado a atenção mediática, como o que se refere aos “divorciados recasados”, ou às “uniões de pessoas do mesmo sexo”.
Têm
sido de facto abordados, mas não constituem o cerne da reflexão
sinodal.
Esta
incide sempre, directa ou directamente, na família em geral...
O
texto integral de D. Manuel Clemente:
Passada
a primeira semana de trabalhos sinodais, deixo uma resenha de pontos
ventilados, como resumo rápido e pessoal do que vai acontecendo.
Lembro
que a reflexão incide sobre “Os desafios pastorais da família no
contexto da evangelização”, não se detendo em alguns temas que
têm polarizado a atenção mediática, como o que se refere aos
“divorciados recasados”, ou às “uniões de pessoas do mesmo
sexo”.
Têm
sido de facto abordados, mas não constituem o cerne da reflexão
sinodal.
Esta
incide sempre, directa ou directamente, na família em geral – não
apenas no seu núcleo conjugal – e no modo mais adequado de propor
a respectiva visão cristã e de formar os crentes para a sua
constituição e vivência.
Muito
importante tem sido a presença cordial do Papa Francisco, bem como o
foram as suas palavras iniciais, insistindo em que falássemos com
grande franqueza (parresia) e ouvíssemos com humildade (cf.
L’Osservatore Romano, 6-7 Out. 2014, p. 12).
E
assim tem sido, com disponibilidade para falar e ouvir opiniões
concordes ou eventualmente discordes, sobre pontos concretos e com
sensibilidades distintas.
Nunca
está em causa a visão cristã do casal e da família, a partir das
palavras de Cristo e da Tradição eclesial, ao mesmo tempo idêntica
nas afirmações essenciais e dinâmica na relação com as situações
e a própria evolução humana e social.
Pouco
a pouco, fica mesmo mais claro o que é essencial e o que devemos
fazer, para que tal essencialidade se reapresente agora, face aos
“desafios” que a actualidade nos lança.
Do
que se tem dito e ouvido, sobressai a consciência do contraste entre
muito do que a sociocultura globalizada difunde e sugere sobre a
conjugalidade e a família e o que a visão crente e cristã entende
sobre elas.
Rarefacção
dos vínculos tradicionais e individualização das decisões e das
existências, desinstitucionalização e efemeridade dos
compromissos, desvalorização do que não seja imediato e logo
compensatório: estas e outras notas tornam-se mentalidade e
sensibilidade generalizadas, sem grandes diferenças à escala
mundial.
Foi
por isso acentuado que «os cristãos devem saber responder
adequadamente às verdadeiras e próprias emergências que nos
chegam, além do mais, numa atmosfera cultural em crescente contraste
com os valores propostos pela Igreja […].
Referem-se
as posições ideológicas que se difundem e tendem a influenciar os
próprios ordenamentos jurídicos» (L’O.R., 9 Out., p. 7).
Daqui
que o Sínodo vá sublinhando a necessidade e a urgência de
esclarecimento cristão sobre a realidade familiar e de tomar este
ponto como verdadeiramente prioritário para as nossas comunidades,
movimentos e grupos.
Apoiar
sempre a família, na respectiva formação e na complementaridade e
intergeracionalidade dos seus membros, evidencia-se como a base de
toda a pastoral a empreender.
Posso
até dizer que este ponto é o mais saliente dos presentes trabalhos
sinodais, tal é a consciência do desafio sociocultural que a
família cristã tem pela frente.
Salientou-se,
a propósito, o lugar do testemunho familiar cristão, como neste
resumo de várias intervenções: «Falou-se da importância de
percorrer a via do testemunho para uma eficaz preparação do
matrimónio, sem nos preocuparmos com a possibilidade de um percurso
formativo mais sério fazer diminuir o número de esposos».
E
chegou a dizer-se que tudo se há de fazer «para que a Igreja não
passe de “hospital de campanha” a “morgue” em que se
multiplicam as autópsias de matrimónios defuntos» (cf. L’O.R., 8
Out., p. 8).
Parecendo
forte a imagem, não é menos real a constatação dos fracassos
conjugais que tantos problemas trazem aos próprios e aos respectivos
familiares.
O
Sínodo não ilude a questão, nem as consequências sacramentais, no
caso de divorciados recasados.
Tem
sido ponto recorrente, em contraste com o primeiro, acima indicado:
«O sínodo voltou a reflectir sobre os casais em dificuldade, os
divorciados recasados.
A
Igreja deve apresentar não um juízo mas uma verdade.
Quanto
ao acesso à Eucaristia, reafirmou-se que não é sacramento dos
perfeitos mas dos que estão a caminho» (ibidem).
Sendo
necessário, antes, durante e depois, estar de facto “a caminho”,
ou seja, em conversão permanente – para todos e especialmente para
os casos referidos.
Da
realidade vivida ao desígnio inultrapassável de Cristo há sempre
caminho a percorrer, caminho aberto…
Muitas
referências são feitas também à necessidade de agilizar os
processos de verificação da validade dos matrimónios celebrados,
quando há razões para tal. Como, por exemplo: «Antes de mais,
acentuou-se em várias intervenções a necessidade de acelerar o
processo canónico para o reconhecimento das nulidades matrimoniais,
para que os fiéis não fiquem privados dos sacramentos por muito
tempo» (L’O.R., 9 Out., p. 7).
E
o resumo mais fiel de quanto se disse das “situações
“irregulares” será este: «Os padres sinodais explicaram
detalhadamente as suas razões sobre a admissão ou não dos
divorciados recasados à Eucaristia. Com posições diversas.
Também
se contaram histórias particulares de pessoas que vivem em condições
de sofrimento.
Por
exemplo, evidenciou-se a necessidade de distinguir entre os que
abandonaram injustamente o cônjuge e os que, pelo contrário, foram
abandonados injustamente.
Registaram-se
intervenções significativas, seja de quem acha que não é possível
introduzir a comunhão para os divorciados recasados, seja de quem
convida ao discernimento das várias situações, para não praticar
uma pastoral do “tudo ou nada”» (cf. L’O.R., 10 Out., p. 8).
Nestes
dois pontos se tem principalmente insistido: a necessidade de fazer
da família, cristãmente entendida, e da pastoral familiar,
continuamente exercitada, o critério de acção das nossas
comunidades, assim mesmo transformadas em “famílias de famílias”;
e o atendimento positivo dos casos de dificuldade ou fracasso
conjugal, na sequência do que tem sido o desenvolvimento da doutrina
e da prática eclesial.
Pode
aliás lembrar-se a evolução verificada, do Código de Direito
Canónico de 1917, que tratava os divorciados recasados como bígamos
e infames, que podiam ser atingidos pela excomunhão e interdição
pessoal, ao Código de Direito Canónico de 1984, que não prevê
tais punições, mas restrições menos graves; ou às exortações
apostólicas Familiaris Consortio (João Paulo II, 1981) e
Sacramentum Caritatis (Bento XVI, 2007), que falam com afabilidade de
tais cristãos, afirmando que não são excomungados, mas antes
convidados à participação eclesial, ainda que sem confissão
sacramental nem comunhão eucarística, enquanto durar tal situação
pessoal.
Também
para aqui apontou o Cardeal Kasper na sua alocução ao consistório
de Fevereiro passado – feita a convite do Papa Francisco,
recordemos –, quando disse estarmos numa situação semelhante à
do Concílio Vaticano II, ao tratar da liberdade religiosa.
Na
minha intervenção sinodal, referi-me explicitamente a este ponto,
nos seguintes termos: «Há cinquenta anos, não foi propriamente
fácil aos padres conciliares conjugarem a liberdade religiosa com a
objectividade da verdade revelada.
Mas
acabaram por incluir nesta mesma objectividade o espaço que Deus dá
a cada um para prosseguir na descoberta da verdade e na adesão a ela
(cf. Declaração Dignitatis Humanae, 2).
Creio
que, com as devidas distinções de tema e solução, há neste
importantíssimo ponto conciliar uma luz oportuna para o que nos
ocupa agora, a bem da família e da sua dimensão sacramental, a
manter e a recuperar sempre que possível».
Seguem-se
nestes dias as reuniões de grupo e a preparação da mensagem
(nuntius) final, com o mesmo clima de franqueza e humildade que o
Papa Francisco desejou e felizmente se verifica.
Sem
esquecer que esta é apenas uma etapa preparatória do Sínodo de
2015 e do que o Papa decidir depois.
Rezemos
entretanto, para que o Espírito nos conduza àquela “verdade
total” que Deus nos ofereceu em Cristo e só pouco a pouco se
desvenda, sempre idêntica a si mesma e continuamente desdobrada na
história.
Roma,
12 de Outubro de 2014
+
Manuel Clemente
Fonte:
Patriarcado de Lisboa
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