Lucetta
Scaraffia
Uma
nova escravidão que não pode ser julgada diversamente só porque é
paga e voluntária
Houve
um debate na Itália sobre o decreto do juiz de Trento que aceitou
considerar dois homens como pais de dois gémeos, nascidos com o
recurso ao útero alugado.
Mas
o debate foi pesadamente falsificado pelo prevalecer de um ponto de
vista parcial: ou seja, considerar inevitável esta decisão,
perfeitamente em sintonia com o progresso humano, e por conseguinte
julgar qualquer atitude crítica como um sinal de absurda resistência
à modernidade.
Trata-se
de uma modalidade que imprime a cada entrevista, inclusive a quantos
são contrários a esta decisão, uma interpretação obrigatória.
Com
efeito, seria só questão de tempo para ver realizado também na
Itália qualquer «sonho de genitorialidade» que envolve o aluguer
do útero e a aceitação de duas pessoas do mesmo sexo como pais.
Surpreende
uma mulher como eu, feminista, o facto de num momento como este, no
qual tantas energias e vozes se dedicam à denúncia, justamente, da
violência sobre as mulheres, que haja tão poucas mulheres a
denunciar o que está a acontecer contra elas no nível fundamental
da maternidade.
Ou
seja, que a venda do corpo feminino – tradicionalmente limitada às
prestações sexuais ou, outrora, à amamentação – se tenha
alargado a todo o corpo da mulher, ao seu íntimo, ao útero, e por
um tempo longo, os nove meses de uma gravidez.
Uma
nova escravidão que não pode ser julgada diversamente só porque é
paga e voluntária.
As
penosas condições legais impostas à mulher – por exemplo,
aceitar o aborto se o decidir quem faz a encomenda, ou então já ter
filhos para se afeiçoar menos à criança que leva no seio –
frisam ulteriormente o carácter desumano da transacção.
Assim
como a outra condição à qual sempre, por «prudência», se
recorre: nunca utilizar o oócito da mãe que aluga, mas comprá-lo a
outra mulher.
Com
o resultado que a figura materna é definitivamente destruída, feita
em bocados.
Foi
o que fizeram os dois pais, para garantirem que os filhos fossem
deveras só de sua propriedade, com o consentimento da lei canadense.
Como
é possível que não se veja uma acção profundamente misógina
nesta operação de tipo comercial, que pretende ser enobrecida por
um desejo que não pode ser considerado um direito para ninguém?
Com
efeito, trata-se de uma consciente e desejada destruição da figura
materna, levada a termo com obstinação, de modo que aquelas
crianças nunca tenham uma mãe.
Todos
sabem que dois pais não substituem uma mãe, assim como duas mães
não podem substituir um pai.
Se
a vida, por vezes, impõe que seres humanos convivam desde a origem
com esta grave falta, é preciso procurar remediar.
Mas
criar a falta voluntariamente – e além do mais, protegidos pela
lei – unicamente para satisfazer o desejo de dois adultos, é
deveras uma acção cruel.
E
a cultura que nos circunda, a qual insiste em interpretar esta
situação anormal como o resultado do progresso que avança, quase
como se estivesse animado por um espírito próprio, e por
conseguinte não controlável, está a manchar-se de culpas graves.
Ao
contrário, o alarme deve ser lançado e em voz alta.
E
são sobretudo as mulheres, as mais danificadas por estas absurdas
manipulações, que devem lutar para se defenderem a si mesmas e às
crianças.
Lucetta
Scaraffia
Editorial
de L'Osservatore Romano, 4 de Março de 2017
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