Em
entrevista exclusiva à Renascença, o Papa Francisco
Diz
que as pessoas estão desiludidas com a corrupção;
Acredita
que o "grande desafio da Europa é voltar a ser a mãe Europa";
Apela
ao acolhimento dos refugiados;
Pede
que a catequese "não seja teórica" e que a Igreja saia de
si mesma;
E
acredita que Fátima faz de Portugal um país "privilegiado"
Para
quem não teve oportunidade de ouvir a entrevista transmitida às
9H00 de hoje pela Rádio Renascença, transcrevemos as questões
colocadas a 8 de Setembro, no Vaticano, pela jornalista Aura Miguel
ao Papa Francisco e as respostas deste.
Para
um Papa que vem do “fim do mundo”, como olha para Portugal e para
os portugueses?
Em
Portugal, só estive uma vez no aeroporto, há anos, quando vinha
para Roma, num avião da Varig que fazia escala em Lisboa, por isso,
só conheço o aeroporto. Mas conheço muitos portugueses. E, no
Seminário de Buenos Aires, havia muitos empregados, emigrantes
portugueses, gente boa, que tinha muita familiaridade com os
seminaristas. E o meu pai tinha um colega de trabalho português.
Lembro-me do seu nome, Adelino, bom homem. E uma vez conheci uma
senhora portuguesa, com mais de 80 anos, que me deixou boa impressão.
Quer dizer, nunca conheci um português mau.
No
seu discurso aos bispos portugueses, além de elogiar o povo
português e olhar para a Igreja com serenidade, o Santo Padre
manifesta duas preocupações: uma em relação aos jovens e outra em
relação à catequese. O Santo Padre usa uma imagem, dizendo que “os
vestidos da primeira comunhão já não servem aos jovens”, mas que
há “certas comunidades que insistem em vestir-lhos”. Qual é o
problema?
É
uma maneira de dizer. Os jovens são mais informais e têm o seu
próprio ritmo. Temos de deixar que o jovem cresça, temos de o
acompanhar, não o deixar sozinho, mas acompanhá-lo. E saber
acompanhá-lo com prudência, saber falar no momento oportuno, saber
escutar muito. Um jovem é inquieto. Não quer que o incomodem e,
nesse sentido, pode-se dizer que “o vestido da primeira comunhão
não lhes serve”. As crianças, pelo contrário, quando vão
comungar, gostam do vestido da primeira comunhão. É uma ilusão. Os
jovens têm outras ilusões que, muitas vezes, são muito boas, mas
há que respeitar, porque eles mesmos não se entendem, porque estão
a mudar, estão a crescer, estão à procura, não é? Por isso, é
preciso deixar o jovem crescer, há que o acompanhar, respeitar e
falar-lhe muito paternalmente.
Porque,
ao mesmo tempo, há uma exigência a propor, mas essa exigência,
muitas vezes, não é atractiva!
Por
isso, há que procurar aquilo que atrai um jovem e exigir-lho. Por
exemplo, um caso concreto: se você propõe a um jovem – e vemos
isto por todo o lado – fazer uma caminhada, um acampamento ou fazer
missão para outro sítio, ou por vezes ir a um “cotolengo” [obra
fundada por sacerdote italiano de acolhimento de doentes com grave
deficiência múltiplas, abandonadas pelas famílias e em situação
de risco] para cuidar dos doentes, durante uma semana ou quinze dias,
entusiasma-se porque quer fazer algo pelos outros. Está envolvido.
“Involucrado”?
Sim,
fica por dentro, compromete-se. Não olha a partir de fora.
Envolve-se, ou seja, compromete-se.
Então,
porque é que não fica?
Porque
está a caminhar.
E
qual é o desafio que a Igreja, então, deve enfrentar? O Santo Padre
também falou de uma catequese, que muitas vezes permanece teórica e
onde falta esta capacidade de propor o encontro…
Pois
é importante que a catequese não seja puramente teórica. Isso não
serve. A catequese é dar-lhes doutrina para a vida e, portanto, tem
de incluir três linguagens, três idiomas: o idioma da cabeça, o
idioma do coração e o idioma das mãos. E a catequese deve entrar
nesses três idiomas: que o jovem pense e saiba qual é a fé, mas
que, por sua vez, sinta com o seu coração o que é a fé e, por sua
vez, faça coisas. Se falta à catequese uma destas três línguas,
destes três idiomas, não avança. Três linguagens: pensar o que se
sente e o que se faz, sentir o que se pensa e o que se faz, fazer o
que se sente e o que se pensa.
Escutando
vossa Santidade, isto parece óbvio, mas, olhando à volta –
sobretudo na velha Europa, na velha cristandade – não é assim. O
que é que falta? Mudar a mentalidade? Como se faz?
Mudar
a mentalidade, não sei, porque não conheço tudo, não é? Mas é
verdade que, a metodologia catequética, às vezes, não é completa.
Há que procurar uma metodologia da catequese que junte as três
coisas: as verdades que se devem crer, o que se deve sentir e o que
se faz, o que se deve fazer, tudo junto.
Santidade,
para o centenário das aparições de Nossa Senhora de Fátima, nós
esperamos por si em Portugal. Três Papas já nos visitaram (João
Paulo II por três vezes). O Senhor, que ama muito a Virgem, o que
espera da sua visita em 2017?
Bom,
vamos lá esclarecer as coisas. Eu tenho vontade de ir a Portugal
para o centenário. Em 2017 também se cumprem 300 anos do encontro
da Imagem da Virgem de Aparecida.
….
uma data estereofónica, em dois lados! (risos)
...
por isso, também estou com vontade de lá ir e já prometi lá ir.
Quanto a Portugal, disse que tenho vontade de ir e gostaria de ir. É
mais fácil ir a Portugal, porque podemos ir e voltar num só dia, um
dia inteiro, ou, quanto muito, ir um dia e meio ou dois dias. Ir ter
com a Virgem. A Virgem é mãe, é muito mãe, e a sua presença
acompanha o povo de Deus. Por isso, gostaria de ir a Portugal, que é
privilegiado.
E
o que espera de nós, portugueses? Como podemos preparar-nos para o
receber e também para seguir os pedidos de Nossa Senhora?
O
que a Virgem pede sempre é que rezemos, que cuidemos da família e
dos mandamentos. Não pede coisas estranhas. Pede que rezemos pelos
que andam desorientados, pelos que se dizem pecadores – todos o
somos, eu sou o primeiro. Mas a Virgem pede e há que se preparar
através desses pedidos da Virgem, através dessas mensagens tão
maternais, tão maternais... e manifestando-se às crianças. É
curioso, Ela procura sempre almas muito simples, não é? Muito
simples.
Esta
entrevista acontece em plena crise dos refugiados. Santo Padre, como
está a viver esta situação?
É
a ponta de um icebergue. Vemos estes refugiados, esta pobre gente que
escapa da guerra, que escapa da fome, mas essa é a ponta do
icebergue. Porque debaixo dele, está a causa. E a causa é um
sistema socioeconómico mau e injusto, porque dentro de um sistema
económico (dentro do mundo, falando do problema ecológico, da
sociedade socioeconómica, da política) o centro tem de ser sempre a
pessoa. E o sistema económico dominante, hoje em dia, descentrou a
pessoa, colocando no centro o deus dinheiro, que é o ídolo da moda.
Ou seja, há estatísticas, não me recordo bem (isto não é exacto
e posso equivocar-me), mas 17% da população mundial detém 80% das
riquezas.
E
esta exploração das riquezas dos países mais pobres, a médio
prazo traz esta consequência: a de estes todos que agora querem vir
para a Europa…
E
o mesmo acontece nas grandes cidades. Por que surgem as favelas nas
grandes cidades?
O
critério é o mesmo…
É
o mesmo; é gente que vem do campo, porque o desflorestaram, porque
fizeram monocultivo, não têm trabalho e vão para as grandes
cidades.
Em
África, também é igual…
Em
África... ou seja, é o mesmo fenómeno. Então, esta gente emigrada
que vem para a Europa – é a mesma coisa – à procura de um
sítio. E, claro, para a Europa neste momento, é uma surpresa,
porque até custa a crer que isto esteja a acontecer, não é? Mas
acontece.
Mas
o Santo Padre, quando foi a Estrasburgo, disse que era “necessário
actuar sobre as causas e não apenas sobre os efeitos”. Mas parece
que ninguém ouviu e, agora, os efeitos estão à vista…
Temos
de ir às causas.
E
ninguém o ouviu, muito provavelmente…
Onde
as causas são a fome, há que criar fontes de trabalho,
investimentos. Onde a causa é a guerra, procurar a paz, trabalhar
pela paz. Hoje em dia, o mundo está em guerra contra si mesmo, ou
seja, o mundo está em guerra, como digo, uma guerra em folhetins,
aos pedaços, mas também está em guerra contra a Terra, porque está
a destruir a Terra, ou seja, a nossa casa comum, o ambiente. Os
glaciares estão a derreter-se, no Árctico, o urso branco vai cada
vez mais para o norte para poder sobreviver.
E
a preocupação pelo homem e pelo seu destino, parece ignorada. Como
vê a reacção da Europa à vaga de refugiados? Uns constroem muros,
outros escolhem os refugiados consoante a sua religião, outros
aproveitam esta situação para fazer discursos populistas.
Cada
um faz uma interpretação da sua cultura. E, por vezes, a
interpretação ideológica, ou das ideias, é mais fácil do que
fazer as coisas, que é a realidade. Mais longe da Europa, há um
outro fenómeno que também me doeu muito: os “rohingya” [grupo
étnico muçulmano, provavelmente, com origem na antiga Birmânia.
Marginalizados por razões étnicas e religiosas, foram apontados
pela ONU como uma das minorias mais perseguidas do mundo], que foram
expulsos do seu país e que entram num barco e partem. Chegam a um
porto ou a uma praia, dão-lhes água, dão-lhes de comer e depois,
mandam-nos outra vez para o mar e não os acolhem. Ou seja, falta a
capacidade de acolhimento da humanidade.
Porque
não é tolerar; é mais do que tolerância: é acolhimento.
Acolher,
acolher as pessoas, e acolher tal como vêm. Eu sou filho de
emigrantes e pertenço à onda migrante do ano 1929. Mas na
Argentina, desde o ano 1884, começaram a chegar italianos,
espanhóis... portugueses, não sei quando chegou a primeira onda
portuguesa; vinham sobretudo destes três países. E quando chegavam
lá, alguns tinham dinheiro, outros iam para o hotel de emigrantes e
daí eram enviados para as cidades. Iam trabalhar ou procurar
trabalho. É verdade que, naquela época, havia trabalho, mas, os da
minha família – que tinham trabalho quando chegaram, em 29 –, no
ano 32, com a crise económica de 30, ficaram na rua, sem nada. O meu
avô comprou um armazém com dois mil pesos que lhe emprestaram e o
meu pai, que era contabilista, andava a fazer distribuição com a
canasta; ou seja, tinham vontade de lutar, de vencer... Eu sei o que
é a migração! E depois, vieram as migrações da Segunda Guerra,
sobretudo do centro da Europa, muitos polacos, eslovacos, croatas,
eslovenos e também da Síria e do Líbano. E sempre nos demos bem
por lá. Na Argentina, não houve xenofobia. E agora, há migração
interna na América, vêm de outros países da América para a
Argentina, apesar de ter diminuído nos últimos anos, por falta de
trabalho na Argentina.
E
também do México para os Estados Unidos. Há todo um fenómeno…
O
fenómeno migratório é uma realidade. Mas eu queria abordar o tema,
sem censurar ninguém. Quando há um espaço vazio, a gente procura
preenchê-lo. Se um país não tem filhos, vêm os emigrantes ocupar
o lugar. Penso no nível dos nascimentos de Itália, Portugal e
Espanha. Creio que é quase 0%. Então, se não há filhos, há
espaços vazios. Ou seja, o não querer ter filhos, em parte, – e
isto é uma interpretação minha, não sei se está correcta – é
um pouco o resultado da cultura do bem-estar, não é? Eu ouvi,
dentro da minha própria família, cá, há uns anos, por parte dos
meus primos italianos dizer: “Não, crianças, não; preferimos
viajar nas férias, ou comprar uma ‘villa’, ou isto ou aquilo”...
e os idosos vão ficando sozinhos. Creio que o grande desafio da
Europa é voltar a ser a mãe Europa...
E
não a…
...
a avó Europa. Perdão, há países da Europa que são jovens, por
exemplo, a Albânia. A Albânia impressionou-me, gente com 40 anos,
45 anos... e a Bósnia-Herzegovina, ou seja, países que se refizeram
depois de uma guerra, não é?
Por
isso, o Santo Padre os visitou…
Ah
sim, claro. É um sinal para a Europa.
Mas
este desafio do acolhimento a estes refugiados que estão a entrar,
na sua perspectiva, pode ser muito positivo para a Europa? É um
benefício, uma provocação? Finalmente, de algum modo, a Europa
pode despertar, mudar de rumo?
Pode
ser. É verdade e reconheço que, hoje em dia, as condições de
segurança territorial não são as mesmas de outra época porque, na
verdade, temos, a 400 quilómetros da Sicília, uma guerrilha
terrorista sumamente cruel, não é? Então, existe o perigo da
infiltração, isso é verdade.
E
que pode chegar até Roma.
Ah
sim, ninguém assegurou que Roma seja imune a isto, não é? Mas
podem-se tomar precauções e pôr toda a gente que vem a trabalhar.
Mas também há outro problema, é que a Europa atravessa uma crise
laboral muito grande. Há um país, melhor, vou falar de três
países, mas que não vou nomear, dos mais importantes da Europa, em
que o desemprego juvenil dos jovens com menos de 25 anos, num país é
de 40%, noutro país é de 47% e noutro é de 50%. Há uma crise
laboral, o jovem não encontra trabalho. Ou seja, misturam-se muitas
coisas. Nisto, não podemos ser simplistas. Evidentemente, se chega
um refugiado, com as medidas de segurança de todo o tipo, há que
recebê-lo, porque é um mandamento da Bíblia. Moisés disse ao seu
povo: “Recebei o forasteiro porque não esqueçais que vós fostes
forasteiros no Egipto”.
Mas
o ideal era que eles não tivessem fugido, que ficassem nas suas
terras, não?
Isso,
sim.
No
Angelus de 6 de Setembro, lançou o desafio às paróquias para que
acolham refugiados. Já houve reacções? O que espera em concreto?
O
que eu pedi foi isto: que cada paróquia, cada instituto religioso,
cada mosteiro, acolha uma família. Uma família, não uma pessoa.
Uma família dá mais segurança de contenção, um pouco para evitar
que haja infiltrações de outro tipo. Quando digo que uma paróquia
deve acolher uma família, não digo que tenham de ir viver para a
casa do padre, para a casa paroquial, mas que toda a comunidade
paroquial veja se há um lugar, um canto num colégio para aí se
fazer um pequeno apartamento ou, na pior das hipóteses, que arrendem
um modesto apartamento para essa família; mas que tenham um tecto,
que sejam acolhidos e que se integrem na comunidade. Já tive muitas
reacções, muitas, muitas. Há conventos que estão quase vazios.
Há
dois anos, o Santo Padre já fez esse apelo e que resultados é que
houve?
Só
quatro. Um deles, dos jesuítas (risos); muito bem, os jesuítas! Mas
o assunto é sério, porque aí também há a tentação do deus
dinheiro. Algumas congregações dizem “Não, agora que o convento
está vazio, vamos fazer um hotel e podemos receber pessoas e, com
isso, sustentamo-nos ou ganhamos dinheiro”. Pois bem, se quereis
fazer isso, pagai os impostos! Um colégio religioso, por ser
religioso está isento de impostos, mas se funciona como hotel,
então, que pague os impostos como qualquer vizinho do lado. Senão,
o negócio não é limpo.
E
o Santo Padre já disse que, aqui no Vaticano, acolhe duas famílias.
Sim,
duas famílias. Já me disseram ontem que as famílias já estavam
localizadas e as duas paróquias do Vaticano encarregaram-se de as
procurar.
Já
estão identificadas?
Sim,
sim, sim, já estão. Quem o fez foi o cardeal Comastri, que é o meu
vigário-geral para o Vaticano, juntamente com o encarregado da
Esmolaria Apostólica, monsenhor Konrad Krajewski, que trabalha com
os sem-abrigo e foi quem fez os duches debaixo da colunata, o serviço
de barbearia – realmente, uma maravilha – é o que leva os que
vivem na rua a ver os museus e a Capela Sistina.
E
estas famílias ficam até quando?
Até
quando o Senhor quiser. Não se sabe como isto vai acabar, não é?
De todas as maneiras, quero dizer que a Europa tomou consciência, e
eu agradeço-lhe. Agradeço aos países da Europa que tomaram
consciência disto.
A
Renascença aderiu em Portugal a uma iniciativa, que reúne
instituições cristãs e também de outras religiões, para acolher
e movimentar-se a favor dos refugiados. Pode dizer algumas palavras a
quem participa nesta plataforma?
Felicito-vos
e agradeço-vos pelo que estão a fazer e dou-vos um conselho: no dia
do Juízo Final, já sabemos sobre o que vamos ser julgados, está
escrito no capítulo 25 de São Mateus. Quando Jesus vos disser
“Estive com fome, deste-me de comer?”, vocês vão dizer “Sim.
“E quando estive sem refúgio, como refugiado, ajudaste-me?”,
“Sim”. Pois, felicito-vos: vão passar no exame! E também queria
dizer uma coisa sobre o trabalho com jovens desocupados. Creio que
aqui é urgente, sobretudo para as congregações religiosas que têm
como carisma a educação, mas também os leigos, os educadores
leigos, que inventem cursos, pequenas escolas de emergência. Então,
para um jovem que está desocupado, se estudar, durante seis meses,
para ser cozinheiro ou canalizador, para fazer pequenas reparações
– há sempre um tecto para arranjar - ou para pintor, com esse
ofício, terá mais possibilidade de encontrar um trabalho, ainda que
parcial ou temporário. Fazer o que nós chamamos de “biscate”,
um trabalho ocasional e com isso não está totalmente desocupado.
Mas hoje é o tempo da educação de emergência. Foi o que fez Dom
Bosco. Dom Bosco, quando viu a quantidade de crianças que havia na
rua, disse “tem de haver educação”, mas não mandou as crianças
para a escola média ou secundária, sim aprender ofícios. Então,
preparou carpinteiros, canalizadores, que os ensinavam a trabalhar e,
assim, já tinham com que ganhar o pão. Dom Bosco fez isso. E agora
gostava de contar um episódio sobre Dom Bosco. Aqui em Roma, perto
do Trastevere, onde...
Era
uma zona pobre.
Sim,
era uma zona muito pobre, mas que agora é zona da moda para os
jovens, para a “movida”, não é? Pois Dom Bosco passou por ali,
ia de carruagem – ou de carro, não sei – e atiraram-lhe uma
pedrada que partiu o vidro. Ele mandou parar e disse: “Este é o
lugar que onde vamos ficar!”. Ou seja, perante uma agressão, não
a viveu como agressão, viveu-a como um desafio para ajudar aquela
gente, as crianças, os jovens que só sabiam agredir. E hoje, existe
ali uma paróquia salesiana que forma jovens e crianças, com as suas
escolas e as suas coisas. Assim, volto ao tema dos jovens: o
importante é que hoje se dê, aos jovens que não têm trabalho, uma
educação de emergência sobre algum ofício que lhes permita ganhar
a vida.
É
muito crítico também sobre o estilo de vida ocidental e da Europa,
o chamado primeiro mundo, muito centrado no bem-estar. O que é que o
incomoda mais?
Bem,
quer dizer, também nas grandes cidades americanas, quer da América
do Norte, quer da América do Sul, existe este mesmo problema, não é
só na Europa...
...é
o chamado primeiro mundo.
Sim,
nas grandes cidades... Em Buenos Aires há um grande sector da
cultura do bem-estar e, por isso, também há esses cordões à volta
das cidades, as favelas e todas essas coisas, não é? Eu, em relação
à Europa, hoje, não lhe atiraria à cara este tipo de coisas. Há
que reconhecer que a Europa tem uma cultura excepcional. Realmente,
são séculos de cultura e isso também dá um bem-estar intelectual.
Em todo o caso, o que eu diria da Europa, é a sua capacidade de
retomar uma liderança no concerto das nações. Ou seja, que volte a
ser a Europa que define rumos, pois tem cultura para o fazer.
Mas
mantém a identidade, hoje em dia, a Europa? Está em condições de
afirmar a sua identidade?
O
que eu disse em Estrasburgo, pensei muito antes de o dizer. Ou seja,
volto a repetir um pouco isso: a Europa ainda não morreu. Está
meia-avozinha [risos], mas pode voltar a ser mãe. E eu tenho
confiança nos políticos jovens. Os políticos jovens tocam outra
música. Há um problema mundial, que afecta não só a Europa, mas o
mundo inteiro, que é o problema da corrupção. A corrupção a
todos os níveis... e isso também revela um baixo nível moral, não
é?
O
Santo Padre fala disso na sua última encíclica e pede para as
populações estarem mais conscientes. No entanto, verifica-se muita
abstenção. Se vemos os resultados das eleições, a abstenção é
quase maior do que um partido…
Porque
a gente está desiludida. Em parte, por causa da corrupção, em
parte pela ineficácia, em parte pelos compromissos assumidos
anteriormente. E, no entanto, a Europa – volto a dizer o que disse
em Estrasburgo – tem que desempenhar o seu papel, ou seja,
recuperar a sua identidade. É verdade que a Europa se enganou –
não estou a criticar, mas só a recordar –, quando quis falar da
sua identidade sem querer reconhecer o mais profundo da sua
identidade, que é a sua raiz cristã, não foi? Aí enganou-se. Bom,
mas todos nos enganamos na vida... está a tempo de recuperar a sua
fé.
O
que é que pode tocar a liberdade de alguém que “faz o que quer”
e que foi educado desde pequeno com um conceito de felicidade para
quem “a felicidade é não ter problemas”? Em geral, educam-se as
crianças com este desejo de que a felicidade é “não ter
problemas e fazer o que se quer”.
Uma
vida sem problemas é aborrecida. É um tédio. O homem tem, dentro
de si, a necessidade de enfrentar e de resolver conflitos e
problemas. Evidentemente, uma educação para não ter problemas, é
uma educação asséptica. Faça você mesma a experiência: pegue
num copo de água mineral, de água comum, da torneira, e depois
pegue num copo com água destilada. Mete nojo, mas a água destilada
não tem problemas... (risos) é como educar as crianças no
laboratório, não é? Por favor!
Arriscar
é importante?
Correr
o risco, propor sempre metas! Para educar, faz falta usar os pés.
Para educar bem, há que ter um pé bem apoiado no chão e o outro pé
levantado mais à frente e ver onde o posso apoiar. E quando tenho
apoiado o outro, levanto este [faz o gesto com os pés] e... isso é
educar: apoiar-se sobre algo seguro, mas tentar dar um passo em
frente até que o tenha firme e, depois, dar outro passo.
Dá
mais trabalho educar assim…
É
arriscar! Porquê? Porque talvez piso mal e caio... pois bem,
levantas-te e segues em frente!
Na
onda individualista em que vivemos – falou nisso em Estrasburgo –
parece um capricho exigir direitos, sempre mais direitos separados da
busca da verdade. Crê que isto é também um problema na maneira de
viver a fé?
Pode
ser... sempre com mais exigências, sem a generosidade de dar. Ou
seja, é exigir só os meus direitos e não os meus deveres perante a
sociedade, não é? Eu creio que direitos e deveres caminham juntos.
Senão, isso, cria a educação do espelho; porque a educação do
espelho é o narcisismo e hoje estamos numa civilização narcisista.
E
como é que se a vence, como se combate?
Com
a educação, por exemplo, com direitos e deveres, com a educação
dos riscos razoáveis, procurando metas, avançando e não ficando
quieto ou a olhar ao espelho... não vá acontecer-nos como aconteceu
ao Narciso que, de tanto se olhar espelhado na água e se achar tão
lindo, tão lindo, “blup”, afogou-se. [risos]
Diz
que prefere uma igreja acidentada a uma igreja estagnada. O que
entende por “igreja acidentada”?
Sim,
eu explico: é uma imagem de vida. Se uma pessoa tem em sua casa uma
divisão, um quarto, fechado durante muito tempo, surge a humidade, o
mofo e o mau cheiro. Se uma igreja, uma paróquia, uma diocese, um
instituto, vive fechada em si mesmo, adoece (acontece o mesmo com o
quarto fechado) e ficamos com uma Igreja raquítica, com normas
rígidas, sem criatividade, segura, mais que segura, assegurada por
uma companhia de seguros, mas não segura! Pelo contrário, se sai –
se uma igreja, uma paróquia saem – lá para fora, a evangelizar,
pode acontecer-lhe o mesmo que acontece a qualquer pessoa que sai
para a rua: ter um acidente. Então, entre uma igreja doente e uma
Igreja acidentada, prefiro uma acidentada porque, pelo menos, saiu
para a rua.
E
aqui, quero repetir uma coisa que já disse noutra ocasião: na
Bíblia, no Apocalipse, há uma coisa linda de Jesus, creio que no
segundo capítulo (no final do primeiro ou no segundo), em que está
a falar a uma Igreja e diz: “Estou à porta e chamo” - Jesus está
a bater – “Se me abres a porta, entro e vou comer contigo”. Mas
eu pergunto: quantas vezes, na Igreja, Jesus bate à porta do lado de
dentro para que O deixemos sair, a anunciar o reino? Por vezes,
apropriamo-nos de Jesus só para nós, e esquecemo-nos que uma Igreja
que não está em saída, uma Igreja que não sai, mantém Jesus
preso, aprisionado.
Foi
por causa disso que foi eleito Papa?
Isso
pergunte ao Espírito Santo! [risos]
Desde
que é Papa, considera que a Igreja está mais acidentada?
Não
sei. Sei que, pelo que me dizem, Deus está a abençoar muito a sua
Igreja. É um momento que não depende da minha pessoa, mas da bênção
que Deus quis dar à sua Igreja, neste momento. E agora, com este
Jubileu da Misericórdia, espero que muita gente sinta a Igreja como
mãe. Porque pode acontecer à Igreja o mesmo que aconteceu à
Europa, não é? Ficar demasiadamente avó, em vez de mãe, incapaz
de gerar vida.
É
este é o motivo do Jubileu da Misericórdia?
Que
venham todos! Que venham e sintam o amor e o perdão de Deus.
Conheci, em Buenos Aires, um frade capuchinho, um pouco mais novo do
que eu, que é um grande confessor. Tem sempre uma grande fila, com
muita gente, está todo o dia a confessar. Ele é um grande
“perdoador”, perdoa muito. E, às vezes, tem escrúpulos por ter
perdoado muito. Então, uma vez, em conversa, disse-me: “Às vezes,
tenho escrúpulos”. E eu perguntei-lhe: “E o que fazes, quando
tens esses escrúpulos?”. “Vou diante do sacrário, olho para o
Senhor e digo-lhe: Senhor, perdoai-me, hoje perdoei muito, mas que
fique bem claro que a culpa é toda vossa, porque fostes Vós a
dar-me o mau exemplo!"
Por
isso o Santo Padre, neste sentido, também decidiu, nesta carta [a
monsenhor Rino Fisichella sobre o Jubileu da Misericórdia] propor o
perdão às situações mais difíceis e agora mesmo publicou estas
cartas [de “motu proprio”, iniciativas do Papa que têm
normalmente a forma de decreto] que aceleram os processos de
nulidade. Isto também tem a ver com o Jubileu?
Sim,
simplificar... Facilitar a fé às pessoas. E que a Igreja seja
mãe...
A
razão destas cartas “motu proprio” para a nulidade qual é,
exactamente, é agilizar?
Agilizar,
agilizar os processos nas mãos do bispo. Um juiz, um defensor do
vínculo, só uma sentença, porque até agora havia duas sentenças.
Não, agora, é só uma. Se não houver apelo, já está. Se houver
apelo, vai para o metropolita, mas agilizar. E também a gratuitidade
dos processos.
O
Santo Padre fez isto a pensar também no Sínodo e no Jubileu?
Está
tudo relacionado.
Já
sei que não quer falar do Sínodo, mas, no seu coração de pastor
universal, o que pede?
Peço
que rezem muito. Sobre o Sínodo, vocês os jornalistas, já conhecem
o “Instrumentum Laboris”. Vai-se falar disso, do que lá está.
São três semanas, um tema, um capítulo, para cada semana. E
esperam-se muitas coisas, porque, evidentemente, a família está em
crise. Os jovens não se casam. Não se casam. Ou então, com esta
cultura do provisório, dizem “ou vivo junto ou me caso, mas só
enquanto dura o amor, depois, tchau...”
E
que diz a quem vive uma moral contrária à indicação da Igreja e
que tem esta ansiedade de perdão?
Lá
no Sínodo vai-se falar de todas as possibilidades de ajudar estas
famílias. Que uma coisa fique clara – e que o Papa Bento o deixou
bem esclarecido: as pessoas que vivem uma segunda união não estão
excomungadas e têm de ser integradas na vida da Igreja. Isso ficou
claríssimo. E eu, no outro dia na catequese, também o disse
claramente: aproximar-se da missa, da catequese, na educação dos
filhos, nas obras de caridade... há mil coisas, não é?
Santidade,
gostaria de terminar com perguntas sobre a sua vocação. No início
de Março de 2013, preparava-se para ir para a “reforma”. Já
tinha decidido onde ia ficar a viver, etc.. No entanto, tornou-se um
dos homens mais famosos a nível mundial. Como vive esta
circunstância?
Não
perdi a paz. É um dom... a paz é um dom de Deus. É um dom que Deus
me deu, algo que eu não imaginava, pela idade que tenho e por tudo
isso. E, mais ainda, eu até já tinha previsto o meu regresso,
pensando que nenhum Papa seria escolhido na Semana Santa. Então, se
demorássemos a elegê-lo, teríamos de nos despachar até sábado,
antes do Domingo de Ramos. E comprei um bilhete de regresso, para
poder celebrar Missa no Domingo de Ramos e até deixei preparada, na
minha escrivaninha, a homilia. Foi uma coisa que eu não esperava e,
em Dezembro, deixaria o cargo para o qual ia ser nomeado um sucessor.
Assim...
…há
toda uma aventura, agora, à sua frente.
Tudo...
mas não perdi a paz. Não perdi a paz.
O
Papa Francisco é amado em todo o mundo, a sua popularidade cresce,
como revelam as sondagens, e tantos querem vê-lo candidato ao prémio
Nobel. Mas Jesus avisou os seus: ”Sereis odiados por causa do meu
nome”. Como é que se sente, Santidade?
Muitas
vezes me pergunto como será a minha cruz, como é a minha cruz... As
cruzes existem. Não se vêem, mas estão lá. E também Jesus, num
certo momento, foi muito popular e, depois, acabou como acabou. Ou
seja, ninguém tem garantida a felicidade mundana. A única coisa que
eu peço, é que me conserve a paz do coração e que me conserve na
sua Graça, porque, até ao último momento, somos pecadores e
podemos renegar a sua Graça. Consola-me uma coisa: que São Pedro
cometeu um pecado muito grave – renegar Jesus – e, depois,
fizeram-no Papa... Se com este pecado o fizeram Papa, com todos os
que eu tenho, consolo-me, pois o Senhor cuidará de mim como cuidou
de Pedro. Mas Pedro morreu crucificado, enquanto eu não sei como vou
terminar. Que Ele decida, desde que me dê a paz, que Ele faça o que
quiser.
Como
é que vive a sua liberdade sendo Papa? Apareceu de surpresa numa
missa em S. Pedro, de manhã cedo, foi ao oculista arranjar os
óculos… Precisa do contacto com as pessoas?
Sim,
tenho necessidade de sair, mas ainda não chegou a altura certa...
mas, pouco a pouco, vou tendo contacto com as pessoas às
quartas-feiras e isso ajuda-me muito. Sim, a única coisa que
estranho em relação a Buenos Aires é sair a “callejear”, andar
na rua.
E
terminamos com umas perguntas rápidas: o que lhe tira o sono?
Posso
dizer-lhe a verdade? Durmo como uma pedra! [risos]
E
o que o faz correr?
Sempre
que há muito trabalho.
O
que nunca é urgente, que pode esperar?
O
que não é urgente? As pequenas coisas que podem esperar até amanhã
ou depois. Há coisas que são muito urgentes e outras que não são
urgentes... mas não saberei dizer-lhe, em concreto, que isto é mais
urgente do que aquilo.
Com
que frequência se confessa?
Todos
os 15 dias, 20 dias. Confesso-me a um padre franciscano, o padre
Blanco, que tem a bondade de vir cá confessar-me. E nunca tive de
chamar uma ambulância para o levar de regresso, assustado com os
meus pecados! [risos]
Como
e onde gostaria de morrer?
Onde
Deus quiser. A sério... onde Deus quiser...
A
última: como imagina a eternidade?
Quando
era mais novo, imaginava-a muito aborrecida [risos]. Agora, penso que
é um Mistério de encontro. É quase inimaginável, mas deve ser
algo muito bonito e maravilhoso encontrar-se com o Senhor.
Obrigada,
Santo Padre.
Obrigado
eu, e uma grande saudação a todos os ouvintes desta rádio. E, por
favor, peço-vos que rezem por mim. Que Deus vos abençoe e que a
Virgem de Fátima vos proteja.
Fonte:
Rádio Renascença
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