A
Conferência Episcopal Portuguesa divulgou hoje a Nota Pastoral
«Eutanásia:
o que está em causa? Contributos para um diálogo sereno e
humanizador» rejeitando
soluções que coloquem em causa a “inviolabilidade” da vida
Nota
Pastoral do Conselho Permanente da Conferência Episcopal Portuguesa
«Eutanásia:
o que está em causa? Contributos para um diálogo sereno e
humanizador»
As
questões ligadas à legalização da eutanásia e do suicídio
assistido estão em discussão na Assembleia da República e na
sociedade. Como contributo para esse debate, que desejamos seja em
diálogo sereno e humanizador, surge esta Nota Pastoral do Conselho
Permanente da Conferência Episcopal Portuguesa sobre o que
verdadeiramente está em causa[1].
Por
eutanásia, deve entender-se «uma acção ou omissão que, por sua
natureza e nas intenções, provoca a morte com o objectivo de
eliminar o sofrimento»[2]. A ela se pode equiparar o suicídio
assistido, isto é, o acto pelo qual não se causa directamente a
morte de outrem, mas se presta auxílio para que essa pessoa ponha
termo à sua própria vida.
Distinta
da eutanásia é a decisão de renunciar à chamada obstinação
terapêutica[3], ou seja, «a certas intervenções médicas já
inadequadas à situação real do doente, porque não proporcionadas
aos resultados que se poderiam esperar ou ainda porque demasiado
gravosas para ele e para a sua família»[4]. «A renúncia a meios
extraordinários ou desproporcionados não equivale ao suicídio ou à
eutanásia; exprime, antes, a aceitação da condição humana
perante a morte»[5]. É, pois, bem diferente matar e aceitar a
morte. Quer a eutanásia, quer a obstinação terapêutica,
constituem uma ingerência humana antinatural nesse momento-limite
que é a morte: a primeira antecipa esse momento, a segunda
prolonga-o de forma artificialmente inútil e penosa.
De
forma sintética, podemos dizer que subjacente à legalização da
eutanásia e do suicídio assistido está a pretensão de redefinir
tomadas de consciência éticas e jurídicas ancestrais relativas ao
respeito e à sacralidade da vida humana. Pretende-se que o
mandamento de que nunca é lícito matar uma pessoa humana inocente
(“Não matarás”) seja substituído por um outro, que só torna
ilícito o acto de matar quando o visado quer viver. Consequentemente,
intenta-se que a norma segundo a qual a vida humana é sempre
merecedora de protecção, porque um bem em si mesma e porque dotada
de dignidade em qualquer circunstância, seja substituída por um
outro critério, segundo o qual a dignidade e valor da vida humana
podem variar e podem perder-se. Ora, na nossa concepção, isto é
inaceitável.
Para
os crentes, a vida não é um objecto de que se possa dispor
arbitrariamente, é um dom de Deus e uma missão a cumprir. E é no
mistério da morte e ressurreição de Jesus que os cristãos
encontram o sentido do sofrimento. Mas quando se discute a legislação
de um Estado laico importa encontrar na razão, na lei natural e na
tradição de uma sabedoria acumulada um fundamento para as opções
a tomar. O valor intrínseco da vida humana em todas as suas fases e
em todas as situações está profundamente enraizado na nossa
cultura e tem, inegavelmente, a marca judaico-cristã. Mas não é
difícil encontrar na razão universal uma sólida base para esse
princípio. A Constituição Portuguesa reconhece-o ao afirmar
categoricamente que «a vida humana é inviolável» (artigo 24º, nº
1).
A
vida humana é o pressuposto de todos os direitos e de todos os bens
terrenos. É também o pressuposto da autonomia e da dignidade. Por
isso, não pode justificar-se a morte de uma pessoa com o
consentimento desta. O homicídio não deixa de ser homicídio por
ser consentido pela vítima. A inviolabilidade da vida humana não
cessa com o consentimento do seu titular.
O
direito à vida é indisponível, como o são outros direitos humanos
fundamentais, expressão do valor objectivo da dignidade da pessoa
humana. Também não podem justificar-se, mesmo com o consentimento
da vítima, a escravatura, o trabalho em condições desumanas ou um
atentado à saúde, por exemplo.
Por
outro lado, nunca é absolutamente seguro que se respeita a vontade
autêntica de uma pessoa que pede a eutanásia. Nunca pode haver a
garantia absoluta de que o pedido de eutanásia é verdadeiramente
livre, inequívoco e irreversível.
Muitas
vezes, traduz um estado de espírito momentâneo, que pode ser
superado, ou é fruto de estados depressivos passíveis de
tratamento, ou será expressão de uma vontade de viver de outro modo
(sem o sofrimento, a solidão ou a falta de amor experimentados), ou
um grito de desespero de quem se sente abandonado e quer chamar a
atenção dos outros. Mas não será a manifestação de uma
autêntica vontade de morrer. É, pois, uma linguagem alternativa de
quem pede socorro e proximidade afectiva. A dúvida há de subsistir
sempre, sendo que a decisão de suprimir uma vida é a mais
absolutamente irreversível de qualquer das decisões.
Em
nome da autonomia, os que defendem a legalização da eutanásia e do
suicídio assistido não chegam, por ora, ao ponto de pretender a
legalização do homicídio a pedido e do auxílio ao suicídio em
quaisquer circunstâncias. Pretendem apenas reconhecer a licitude da
supressão da vida, quando consentida, em situações de sofrimento
intolerável ou em fases terminais. Desta forma, atentam contra o
princípio de que a vida humana tem sempre a mesma dignidade, em
todas as suas fases e independentemente das condições externas que
a rodeiam. A dignidade da vida humana deixa de ser uma qualidade
intrínseca, passa a variar em grau e a depender de alguma dessas
condições externas. Haveria, pois, situações em que a vida já
não merece protecção (a protecção que merece na generalidade das
situações), por perder dignidade.
Invocam
os partidários da legalização da eutanásia e do suicídio
assistido que, com essa legalização, se respeita, apenas, a vontade
e as concepções sobre o sentido da vida e da morte, de quem
solicita tais pedidos, sem tomar partido. Mas não é assim. O Estado
e a ordem jurídica, ao autorizarem tal prática, estão a tomar
partido, estão a confirmar que a vida permeada pelo sofrimento, ou
em situações de total dependência dos outros, deixa de ter sentido
e perde dignidade, pois só nessas situações seria lícito
suprimi-la.
Quando
um doente pede para morrer porque acha que a sua vida não tem
sentido ou perdeu dignidade, ou porque lhe parece que é um peso para
os outros, a resposta que os serviços de saúde, a sociedade e o
Estado devem dar a esse pedido não é: «Sim, a tua vida não tem
sentido, a tua vida perdeu dignidade, és um peso para os outros».
Mas a resposta deve ser outra: «Não, a tua vida não perdeu
sentido, não perdeu dignidade, tem valor até ao fim, tu não és
peso para os outros, continuas a ter valor incomensurável para todos
nós». Esta é a resposta de quem coloca todas as suas energias ao
serviço dos doentes mais vulneráveis e sofredores e, por isso, mais
carecidos de amor e cuidado; a primeira é a atitude simplista e
anti-humana de quem não pretende implicar-se na questão do sentido
da verdadeira «qualidade de vida» do próximo e embarca na solução
fácil da eutanásia ou do suicídio assistido.
Não
se elimina o sofrimento com a morte: com a morte elimina-se a vida da
pessoa que sofre. O sofrimento pode ser eliminado ou debelado com os
cuidados paliativos, não com a morte. E hoje, as técnicas
analgésicas conseguem preservar de um sofrimento físico
intolerável. Desta forma, pode afirmar-se que a eutanásia é uma
forma fácil e ilusória de encarar o sofrimento, o qual só se
enfrenta verdadeiramente através da medicina paliativa e do amor
concreto para com quem sofre.
Como
afirma Bento XVI, «a grandeza da humanidade determina-se
essencialmente na relação com o sofrimento e com quem sofre»[6].
Para
além do círculo afectivo dos seus familiares e amigos, a dignidade
de quem sofre reclama o cuidado médico proporcionado, mesmo que os
actos terapêuticos e os analgésicos possam, pelo efeito secundário
inerente a muitos deles, contribuir para algum encurtamento da vida.
Neste caso, não se trata de eutanásia, pois o objectivo não é dar
a morte, mas preservar a dignidade humana e a «santidade de vida»,
minimizando o sofrimento e criando as condições para a «qualidade
de vida» possível.
A
mensagem que, através da legalização da eutanásia e do suicídio
assistido, assim se veicula tem graves implicações sociais, que vão
para além de cada situação individual. Esta mensagem não pode
deixar de ter efeitos no modo como toda a sociedade passará a
encarar a doença e o sofrimento.
Há
o sério risco de que a morte passe a ser encarada como resposta a
estas situações, já que a solução não passaria por um esforço
solidário de combate à doença e ao sofrimento, mas pela supressão
da vida da pessoa doente e sofredora, pretensamente diminuída na sua
dignidade. E é mais fácil e mais barato. Mas não é humano! Neste
novo contexto cultural, o amor e a solidariedade para com os doentes
deixarão de ser tão encorajados, como já têm alertado associações
de pessoas que sofrem das doenças em questão e que se sentem,
obviamente, ofendidas quando veem que a morte é apresentada como
“solução” para os seus problemas. E também é natural que haja
doentes, de modo particular os mais pobres e débeis, que se sintam
socialmente pressionados a requerer a eutanásia, porque se sentem “a
mais” ou “um peso”.
É
este, sem dúvida, um perigo agravado num contexto de envelhecimento
da população e de restrições financeiras dos serviços de saúde
que implícita ou explicitamente se podem questionar: para quê
gastar tantos recursos com doentes terminais quando as suas vidas
podem ser encurtadas?
Não
podemos ignorar que, entre nós, uma grande parte dos doentes,
especialmente os mais pobres e isolados, não tem acesso aos cuidados
paliativos, que são a verdadeira resposta ao seu sofrimento.
A
legalização da eutanásia e do suicídio assistido contribuirá
para atenuar a consciência social da importância e urgência de
alterar esta situação, porque poderá ser vista como uma
alternativa mais fácil e económica.
Com
esta Nota Pastoral, apelamos à consciência dos nossos legisladores.
Mas
também sabemos que uma grande percentagem dos nossos concidadãos
afirma aprovar a legalização da eutanásia e do suicídio
assistido. Estamos convictos de que muitos o fazem sem a consciência
clara do que está verdadeiramente em causa. Daí a importância de
um vasto trabalho de esclarecimento para o qual queremos dar o nosso
contributo.
No
Ano Jubilar da Misericórdia, recordamos que esta nos leva a ajudar a
viver até ao fim. Não a matar ou a ajudar a morrer.
Fátima,
8 de Março de 2016
[1]
Sugerimos também a leitura da Nota Pastoral da Conferência
Episcopal Portuguesa, «Cuidar da Vida até à Morte». Contributo
para a reflexão ética sobre o morrer, publicada a 12 de Novembro de
2009, in Documentos Pastorais, vol. VII, Lisboa 2002, 123-131.
[2]
João Paulo II, Carta encíclica Evangelium Vitae (25 de Março de
1995), n. 65.
[3]
Também designada por “encarniçamento médico”.
[4]
João Paulo II, Carta encíclica Evangelium Vitae (25 de Março de
1995), n. 65.
[5]
Ibidem.
[6]
Carta encíclica Spe Salvi (30 de Novembro de 2007), n. 38.
Evangelium Vitae (PDF)
Fontes:
Conferência Episcopal Portuguesa; Santa Sé
Sem comentários:
Enviar um comentário