No
livro "Imaginar a evidência" (Edições 70) o arquitecto
Álvaro Siza Vieira explica a teoria da igreja de Santa Maria
«A
Igreja para Marco de Canaveses, é só uma parte de um conjunto
religioso que prevê ainda um auditório, a escola de catequese e a
habitação para o pároco.
A
visita ao local pré-escolhido tinha-me perturbado profundamente: era
um local dificílimo, com grandes diferenças de cota, sobranceiro a
uma estrada com muito tráfego.
Como
se não bastasse, aquela zona estava marcada por edifícios de
péssima qualidade.
A
construção deste centro paroquial é por isso e também a
construção de um lugar, em substituição de uma escarpa muito
acentuada.
A
igreja articula-se em dois níveis: um superior, da assembleia, e um
inferior, da capela mortuária.
Como
mostram os percursos de acesso às duas cotas, trata-se de espaços
com características decisivamente diferentes.
A
capela mortuária é quase a fundação da própria igreja: cria uma
cota estável, fixa, para que a igreja possa apoiar-se.
Além
disso, com os seus muros de granito e o claustro, estabelece a
distância em relação à estrada.
Esta
plataforma habitada devia portanto surgir como “natureza
construída”.
Mas
é muito importante também a colocação, defronte do acesso
principal, do centro paroquial e da residência do pároco.
Estes
volumes definem um grande “U” que se contrapõe ao pequeno “u”
formado pelas duas torres, a do campanário e a do baptistério.
Cria-se,
assim, o espaço necessário para o grande volume vertical da
fachada.
Ao
mesmo tempo, torna-se possível uma relação com as construções de
pequena escala que circundam esta acrópole.
Fica,
assim, demarcado o adro.
A
referência inicial foi uma construção pré-existente, uma
residência para a terceira idade, de uma arquitectura correta e
ordenada, situada na cota superior da escarpa e com uma extensão
muito significativa em relação à estrada.
A
partir deste novo nível, tudo o resto se foi articulando, reagindo à
complexidade das construções existentes e permitindo finalmente a
criação de um adro, aberto sobre o belíssimo vale de Marco de
Canaveses.
Esperemos
que novas construções não se venham a encostar às péssimas que
já lá existem e se mantenha a abertura sobre o vale, que é
essencial.
A
própria grande porta da igreja, com os seus dez metros de altura,
tem razão de existir exactamente em relação a esta vastíssima
vista.
A
entrada faz-se, normalmente, através de uma porta de vidro, debaixo
da torre da direita, enquanto a porta grande só é aberta em
circunstâncias especiais.
Depois
do movimento lateral de entrada, tem-se a percepção de uma janela
baixa e comprida, do lado direito, que permite ainda a vista para o
exterior.
Naquele
instante, não se sente a luz difusa que chega das altas aberturas na
parede curva e inclinada, à esquerda: Vêem-se, ainda e
imediatamente, o vale e as construções em frente.
A
janela contradiz o ambiente de recolhimento a que estamos habituados
numa igreja e por este motivo gerou polémicas.
O
mesmo se deu com a colocação da estátua da Virgem, que é quase
tão alta como os fiéis e não está assente em pedestal.
Todavia
curiosamente, um teólogo, muito estimado no Porto elogiou o respeito
pelos actuais princípios da liturgia, que acentuam a função de
mediação da Virgem entre Deus e os homens e por consequência entre
os homens.
De
facto a estátua da Nossa Senhora tem uma posição intermédia:
colocada na extremidade da janela e sujeita a uma luz muito intensa,
introduz ao espaço do altar, que quem entra não nota imediatamente.
Três
degraus elevam o plano da celebração, que conclui com duas portas,
pelas quais entra luz clara, filtrada por uma alta chaminé.
Esta
disposição dialoga com o banho de luz sobre as formas curvas dos
limites laterais da abside e sobre o espaço da igreja em geral.
A
iluminação natural varia com o tempo, dependendo da posição do
sol, e vai desde a projecção do desenho do raio de luz até ao
silêncio da aspersão: um grande intervalo, rigoroso e palpável.
A
montagem de todos os elementos é, evidentemente, coerente.
Todavia
esta ordem, caracterizada por algumas contradições existentes e
desejadas, foi construída de maneira lenta e laboriosa.
Não
houve ideias pré-definidas, dadas à priori.
Aquilo
que é agora legível é o resultado da decantação de determinadas
reflexões sobre o espaço, hoje tão difícil, da igreja.
Esta
dificuldade é devida a uma série de importantes alterações na
liturgia: pense-se na celebração da missa, que agora encontra o
sacerdote virado para a assembleia e não de costas.
Uma
tal mudança transforma por completo o carácter da celebração e
anula o sentido de organização espacial tradicional, nas suas
várias formas e na sua lenta e permanente evolução.
Ao
mesmo tempo, esta nova condição não justifica a interpretação da
igreja como auditório.
A
quase totalidade dos projectos recentes não aprofunda devidamente
este aspecto.
Era
indispensável, por conseguinte, uma reflexão sobre as condições,
poderíamos dizer funcionais, do espaço da igreja.
E
no entanto as discussões com os teólogos puseram em evidência a
contradição que envolve hoje as diversas interpretações.
Trata-se,
por isso, de um programa instável, ainda por resolver.
Todavia
era evidente a necessidade de criar uma projecção do celebrante,
uma comunhão com a assembleia, sem que, inevitavelmente, se criasse
aquela distância própria de qualquer auditório.
Por
esta razão propus, para a abside, curvaturas já não côncavas mas
antes convexas.
E
também neste caso não se trata de uma ideia pré-concebida,
imediatamente derivada da variação da liturgia: é uma intuição,
nascida de uma série de exigências, entre as quais a necessidade de
conservar a relação entre os objectos e os movimentos que fazem
parte da celebração.
No
espaço em volta do altar existe uma série de elementos que
participam no ritual: o ambão, o próprio altar, o sacrário, as
cadeiras dos celebrantes e a cruz, os quais lentamente tomaram corpo
e definiram depois o espaço, no respeito pelos movimentos,
pré-estabelecidos, da missa. Assim a igreja adquiriu forma como uma
escultura em negativo, na qual se foram estabelecendo relações de
continuidade e de tensão entre várias partes.
O
traçado do percurso que, no piso inferior, liga o exterior à capela
mortuária é o resultado do estudo daquilo que acontece nestes
espaços.
Foi
determinante, na realidade, o conhecimento do significado do funeral
na região do Minho.
Quando
visitei o maravilhoso cemitério crematório do arquitecto holandês
Pieter Oud, tive a possibilidade de assistir a uma cerimónia
fúnebre.
Verifiquei
que a atmosfera e a relação das pessoas são decisivamente
diferentes do que acontece em Portugal.
Aqui,
durante o funeral, a família e os amigos íntimos estão muito
próximos do defunto, enquanto muitas outras pessoas, vizinhos e
conhecidos, seguem a uma certa distância, naturalmente com menor dor
e emoção. Tornou-se por isso necessária uma sequência de espaços
com características diferentes.
E
também por esta razão pensei num claustro, em que as pessoas vão
fumar, conversar ou eventualmente, porque não, tratar de negócios:
é uma maneira de reagir àquele relativo desconforto determinado
pelo encontro, tão directo, com o problema da morte.
Esta
reacção à dor não se encontra, por exemplo, nos funerais na
Holanda, durante os quais domina o silêncio total.
Ao
claustro segue-se uma primeira galeria, bastante ampla, marcada logo
após a porta de entrada, pela parede curva que desce da abside.
Poucos
metros depois abre-se, à esquerda, uma outra galeria que tem, no
fundo, uma janela vertical de onde se pode ver novamente a estrada.
Não
sei qual a conexão entre esta janela e a janela horizontal do nível
superior, mas creio que a posição vertical da que está em baixo,
no embasamento é devida à procura da sensação necessária do
peso, da gravidade.
O
percurso termina na capela mortuária, que comunica com a primeira
galeria graças a uma janela horizontal.
As
pessoas que estão no interior têm, por isso, a percepção das que
entram ou saem, exactamente como sucede no nível superior, termina
aqui com uma abertura que permite a vista do claustro.
Regressa-se
então, uma vez mais, ao ponto de partida, com o rumor da água de
uma fonte.
No
pátio impõe-se com relevo particular a presença de uma escada, que
conduz de novo ao nível superior.
Neste
projecto, a unidade é conferida pelos percursos que terminam todos
no ponto de partida, circularmente.
A
sensação final é realmente de um lugar fechado, bem delimitado.
Sempre
me impressionou muito o obsessivo convite à meditação que se sente
na maior parte das igrejas.
Na
realidade as aberturas são colocadas frequentemente a uma altura tal
que não permite que se olhe para o exterior, ao mesmo tempo que a
utilização dos vitrais elimina a continuidade e a transparência.
Ao
contrário, parece-me que as recentes modificações na liturgia
contrastam com esta visão de espaço fechado e segregado.
Quando
comecei a estudar o programa, depressa compreendi o enorme alcance
desta ruptura na continuidade secular da tradição.
Todavia
parece-me que este aspecto não tem qualquer paralelo na vida real da
Igreja, na relação entre a igreja e a sociedade.
Por
esta razão, e não obstante as necessárias adaptações, procurei
preservar a continuidade com a tradição.
Assim,
observando atentamente o carácter desta igreja, parece evidente que
a sua concepção é substancialmente conservadora.
Esta
intenção emerge com clareza do desenho da planta que na realidade
exprime uma rígida axialidade.
Contextualmente,
a verticalidade do interior é muito forte.
Na
realidade, apesar da nave ser de secção quadrada, a articulação
de determinados elementos, tais como as duas aberturas por trás do
altar, dá o sentido de elevação.
Diversas
discussões viriam a reforçar esta ideia de continuidade com a
espacialidade canónica.
De
resto, os conselhos dos teólogos foram constantes e determinantes.
Assim,
por exemplo, o baptistério, inicialmente colocado ao lado do altar,
foi posteriormente desviado para perto da entrada, para que
anunciasse a presença da assembleia.
Além
disso, uma vez que o cortejo dos celebrantes tem de percorrer o eixo
longitudinal da igreja, tornou-se necessária a presença de uma
porta, na parede curva e inclinada.
O
ritual da celebração exige, evidentemente, determinadas opções no
tratamento do espaço e na organização dos percursos.
Ao
longo de algumas das paredes interiores foi utilizado azulejo.
Era
necessário um rodapé resistente, que obviasse aos problemas da
limpeza e da manutenção.
No
primeiro momento eu tinha pensado num revestimento em madeira.
Mas
esta escolha em breve me pareceu infeliz, pois teria anulado a
verticalidade da parede e sobretudo porque a reflexão da luz teria
sido inadequada.
Pensei
então no azulejo que, produzido artesanalmente, conserva uma
superfície levemente irregular; isso permite reflexos particulares
de luz, enquanto que as juntas, que são deixadas vazias, manifestam
uma presença sensível.
A
continuidade com o reboco e a unidade da cor são cortadas por essa
presença e por aqueles reflexos.
Numa
primeira fase, o azulejo ladeava toda a igreja; depois, quer pela
necessidade da parede curva chegar até ao solo, quer pela
problemática solução do seu contacto com as portas, o seu uso foi
limitado.
Um
dos objectivos de que se não podia abdicar consistia exactamente em
evitar que os pormenores fossem tão evidentes que competissem com a
estrutura do espaço.
Trabalhei
intensamente na relação, encontro e transição dos materiais.
O
azulejo tem a função de resolver o problema da continuidade,
atenuando as rupturas existentes.
A
maneira de resolver o problema da continuidade.
Atenuando
as rupturas existentes.
A
maneira pela qual são ligados estes três materiais - madeira,
azulejo e reboco - é muito especial, e provavelmente há coisas, que
não posso descrever, que me surgiram da experiência do espaço,
durante a construção.
Na
capela baptismal tenho intenção de desenhar - no interior da parede
do acesso - figuras com cerca de seis metros de altura, deformadas
segundo a perspectiva.
Estas
personagens, que em conjunto representam o baptismo de Cristo, são
de uma importância decisiva, neste espaço excepcional, alto e
estreito, e serão estilizadas de modo a que não resultem
excessivas.
Terão
uma presença muito forte, num azul escuro ou em preto, de modo a
ressaltarem no azulejo branco.
Já
terminei os desenhos, mas não tive coragem de dar inicio à
realização: tenho ainda necessidade de tempo.
Os
elementos que devem ser desenhados são ainda muitos.
A
própria cruz só foi colocada depois da inauguração.
Numa
primeira fase tinha pensado numa cruz em madeira, com um trabalho dos
contornos não muito bem definido e com volumes sobrepostos, que
sugeriam a figura de Cristo.
Depois
o desenho passou por muitas outras fases, muito mais simplificadas,
para se definir, finalmente, numa cruz em que, no encontro entre
vertical e horizontal, na forma da vertical e nas vibrações da
madeira, é imediatamente evidente a presença humana.
Quero
agora revesti-la com uma lâmina de ouro.
A
cruz foi colocada numa posição atentamente calibrada, próxima do
altar, e com a luz.
A
lâmina de ouro dará, então, uma maior desmaterialização e, não
reivindicando protagonismo, reagirá imprevisivelmente com o espaço.
Voltando
ao exterior, nota-se uma presença consistente do granito que, nesta
região, é um dos elementos mais importantes na paisagem, quer na
Natureza quer na construção.
Neste
projecto, a plataforma em granito surge como contraponto necessário
à leveza e à grande concisão geométrica do volume branco.
Em
algumas horas do dia a igreja quase que se desmaterializa: ora parece
desaparecer, ora noutras ocasiões, sobressai quase que
violentamente.
Era
por isso necessária uma base que a prendesse ao solo.
Eu
já tinha estado no Peru, onde estudara as construções
pré-colombianas, que deixaram evidentemente a marca em certos
volumes tão acentuados.»
Álvaro
Siza Vieira In Imaginar a evidência, Edições 70
Fonte:
Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura
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