Este
Sábado o Papa Francisco apresentou a Bula Misericordiae Vultus
(O Rosto da Misericórdia) de proclamação do Jubileu extraordinário
da Misericórdia
Pode
ler aqui o texto integral da Bula Papal
A
Bula divide-se basicamente em três partes:
- na primeira, o Papa Francisco aprofunda o conceito de misericórdia;
- na segunda, oferece algumas sugestões práticas para celebrar o Jubileu;
- e a terceira parte contém alguns apelos.
A
Bula termina com a invocação a Maria, testemunha da misericórdia
de Deus.
Misericordiae
Vultus
BULA
DE PROCLAMAÇÃO DO JUBILEU EXTRAORDINÁRIO DA MISERICÓRDIA
FRANCISCO
BISPO
DE ROMA
SERVO
DOS SERVOS DE DEUS
A
QUANTOS LEREM ESTA CARTA
GRAÇA,
MISERICÓRDIA E PAZ
1.
Jesus Cristo é o rosto da misericórdia do Pai. O mistério da fé
cristã parece encontrar nestas palavras a sua síntese. Tal
misericórdia tornou-se viva, visível e atingiu o seu clímax em
Jesus de Nazaré. O Pai, « rico em misericórdia » (Ef 2, 4),
depois de ter revelado o seu nome a Moisés como « Deus
misericordioso e clemente, vagaroso na ira, cheio de bondade e
fidelidade » (Ex 34, 6), não cessou de dar a conhecer, de vários
modos e em muitos momentos da história, a sua natureza divina. Na «
plenitude do tempo » (Gl 4, 4), quando tudo estava pronto segundo o
seu plano de salvação, mandou o seu Filho, nascido da Virgem Maria,
para nos revelar, de modo definitivo, o seu amor. Quem O vê, vê o
Pai (cf. Jo 14, 9). Com a sua palavra, os seus gestos e toda a sua
pessoa,[1]Jesus de Nazaré revela a misericórdia de Deus.
2.
Precisamos sempre de contemplar o mistério da misericórdia. É
fonte de alegria, serenidade e paz. É condição da nossa salvação.
Misericórdia: é a palavra que revela o mistério da Santíssima
Trindade. Misericórdia: é o acto último e supremo pelo qual Deus
vem ao nosso encontro. Misericórdia: é a lei fundamental que mora
no coração de cada pessoa, quando vê com olhos sinceros o irmão
que encontra no caminho da vida. Misericórdia: é o caminho que une
Deus e o homem, porque nos abre o coração à esperança de sermos
amados para sempre, apesar da limitação do nosso pecado.
3.
Há momentos em que somos chamados, de maneira ainda mais intensa, a
fixar o olhar na misericórdia, para nos tornarmos nós mesmos sinal
eficaz do agir do Pai. Foi por isso que proclamei um Jubileu
Extraordinário da Misericórdia como tempo favorável para a Igreja,
a fim de se tornar mais forte e eficaz o testemunho dos crentes.
O
Ano Santo abrir-se-á no dia 8 de Dezembro de 2015, solenidade da
Imaculada Conceição. Esta festa litúrgica indica o modo de agir de
Deus desde os primórdios da nossa história. Depois do pecado de
Adão e Eva, Deus não quis deixar a humanidade sozinha e à mercê
do mal. Por isso, pensou e quis Maria santa e imaculada no amor (cf.
Ef 1, 4), para que Se tornasse a Mãe do Redentor do homem. Perante a
gravidade do pecado, Deus responde com a plenitude do perdão. A
misericórdia será sempre maior do que qualquer pecado, e ninguém
pode colocar um limite ao amor de Deus que perdoa. Na festa da
Imaculada Conceição, terei a alegria de abrir a Porta Santa. Será
então uma Porta da Misericórdia, onde qualquer pessoa que entre
poderá experimentar o amor de Deus que consola, perdoa e dá
esperança.
No
domingo seguinte, o Terceiro Domingo de Advento, abrir-se-á a Porta
Santa na Catedral de Roma, a Basílica de São João de Latrão. E em
seguida será aberta a Porta Santa nas outras Basílicas Papais.
Estabeleço que no mesmo domingo, em cada Igreja particular – na
Catedral, que é a Igreja-Mãe para todos os fiéis, ou na
Concatedral ou então numa Igreja de significado especial – se abra
igualmente, durante todo o Ano Santo, uma Porta da Misericórdia. Por
opção do Ordinário, a mesma poderá ser aberta também nos
Santuários, meta de muitos peregrinos que frequentemente, nestes
lugares sagrados, se sentem tocados no coração pela graça e
encontram o caminho da conversão. Assim, cada Igreja particular
estará directamente envolvida na vivência deste Ano Santo como um
momento extraordinário de graça e renovação espiritual. Portanto
o Jubileu será celebrado, quer em Roma quer nas Igrejas
particulares, como sinal visível da comunhão da Igreja inteira.
4.
Escolhi a data de 8 de Dezembro, porque é cheia de significado na
história recente da Igreja. Com efeito, abrirei a Porta Santa no
cinquentenário da conclusão do Concílio Ecuménico Vaticano II. A
Igreja sente a necessidade de manter vivo aquele acontecimento.
Começava então, para ela, um percurso novo da sua história. Os
Padres, reunidos no Concílio, tinham sentido forte, como um
verdadeiro sopro do Espírito, a exigência de falar de Deus aos
homens do seu tempo de modo mais compreensível. Derrubadas as
muralhas que, por demasiado tempo, tinham encerrado a Igreja numa
cidadela privilegiada, chegara o tempo de anunciar o Evangelho de
maneira nova. Uma nova etapa na evangelização de sempre. Um novo
compromisso para todos os cristãos de testemunharem, com mais
entusiasmo e convicção, a sua fé. A Igreja sentia a
responsabilidade de ser, no mundo, o sinal vivo do amor do Pai.
Voltam
à mente aquelas palavras, cheias de significado, que São João
XXIII pronunciou na abertura do Concílio para indicar a senda a
seguir: « Nos nossos dias, a Esposa de Cristo prefere usar mais o
remédio da misericórdia que o da severidade. (…) A Igreja
Católica, levantando por meio deste Concílio Ecuménico o facho da
verdade religiosa, deseja mostrar-se mãe amorosa de todos, benigna,
paciente, cheia de misericórdia e bondade com os filhos dela
separados ».[2] E, no mesmo horizonte, havia de colocar-se o Beato
Paulo VI, que assim falou na conclusão do Concílio: « Desejamos
notar que a religião do nosso Concílio foi, antes de mais, a
caridade. (...) Aquela antiga história do bom samaritano foi exemplo
e norma segundo os quais se orientou o nosso Concílio. (…) Uma
corrente de interesse e admiração saiu do Concílio sobre o mundo
actual. Rejeitaram-se os erros, como a própria caridade e verdade
exigiam, mas os homens, salvaguardado sempre o preceito do respeito e
do amor, foram apenas advertidos do erro. Assim se fez, para que, em
vez de diagnósticos desalentadores, se dessem remédios cheios de
esperança; para que o Concílio falasse ao mundo actual não com
presságios funestos mas com mensagens de esperança e palavras de
confiança. Não só respeitou mas também honrou os valores humanos,
apoiou todas as suas iniciativas e, depois de os purificar, aprovou
todos os seus esforços. (…) Uma outra coisa, julgamos digna de
consideração. Toda esta riqueza doutrinal orienta-se apenas a isto:
servir o homem, em todas as circunstâncias da sua vida, em todas as
suas fraquezas, em todas as suas necessidades ».[3]
Com
estes sentimentos de gratidão pelo que a Igreja recebeu e de
responsabilidade quanto à tarefa que nos espera, atravessaremos a
Porta Santa com plena confiança de ser acompanhados pela força do
Senhor Ressuscitado, que continua a sustentar a nossa peregrinação.
O Espírito Santo, que conduz os passos dos crentes de forma a
cooperarem para a obra de salvação realizada por Cristo, seja guia
e apoio do povo de Deus a fim de o ajudar a contemplar o rosto da
misericórdia. [4]
5.
O Ano Jubilar terminará na solenidade litúrgica de Jesus Cristo,
Rei do Universo, 20 de Novembro de 2016. Naquele dia, ao fechar a
Porta Santa, animar-nos-ão, antes de tudo, sentimentos de gratidão
e agradecimento à Santíssima Trindade por nos ter concedido este
tempo extraordinário de graça. Confiaremos a vida da Igreja, a
humanidade inteira e o universo imenso à Realeza de Cristo, para que
derrame a sua misericórdia, como o orvalho da manhã, para a
construção duma história fecunda com o compromisso de todos no
futuro próximo. Quanto desejo que os anos futuros sejam permeados de
misericórdia para ir ao encontro de todas as pessoas levando-lhes a
bondade e a ternura de Deus! A todos, crentes e afastados, possa
chegar o bálsamo da misericórdia como sinal do Reino de Deus já
presente no meio de nós.
6.
« É próprio de Deus usar de misericórdia e, nisto, se manifesta
de modo especial a sua omnipotência ».[5] Estas palavras de São
Tomás de Aquino mostram como a misericórdia divina não seja, de
modo algum, um sinal de fraqueza, mas antes a qualidade da
omnipotência de Deus. É por isso que a liturgia, numa das suas
colectas mais antigas, convida a rezar assim: « Senhor, que dais a
maior prova do vosso poder quando perdoais e Vos compadeceis…»[6]
Deus permanecerá para sempre na história da humanidade como Aquele
que está presente, Aquele que é próximo, providente, santo e
misericordioso.
«
Paciente e misericordioso » é o binómio que aparece,
frequentemente, no Antigo Testamento para descrever a natureza de
Deus. O facto de Ele ser misericordioso encontra um reflexo concreto
em muitas acções da história da salvação, onde a sua bondade
prevalece sobre o castigo e a destruição. Os Salmos, em particular,
fazem sobressair esta grandeza do agir divino: « É Ele quem perdoa
as tuas culpas e cura todas as tuas enfermidades. É Ele quem resgata
a tua vida do túmulo e te enche de graça e ternura » (103/102,
3-4). E outro Salmo atesta, de forma ainda mais explícita, os sinais
concretos da misericórdia: « O Senhor liberta os prisioneiros. O
Senhor dá vista aos cegos, o Senhor levanta os abatidos, o Senhor
ama o homem justo. O Senhor protege os que vivem em terra estranha e
ampara o órfão e a viúva, mas entrava o caminho aos pecadores »
(146/145, 7-9). E, para terminar, aqui estão outras expressões do
Salmista: « [O Senhor] cura os de coração atribulado e trata-lhes
as feridas. (...) O Senhor ampara os humildes, mas abate os
malfeitores até ao chão » (147/146, 3.6). Em suma, a misericórdia
de Deus não é uma ideia abstracta mas uma realidade concreta, pela
qual Ele revela o seu amor como o de um pai e de uma mãe que se
comovem pelo próprio filho até ao mais íntimo das suas vísceras.
É verdadeiramente caso para dizer que se trata de um amor «
visceral ». Provém do íntimo como um sentimento profundo, natural,
feito de ternura e compaixão, de indulgência e perdão.
7.
« Eterna é a sua misericórdia »: tal é o refrão que aparece em
cada versículo do Salmo 136, ao mesmo tempo que se narra a história
da revelação de Deus. Em virtude da misericórdia, todos os
acontecimentos do Antigo Testamento aparecem cheios dum valor
salvífico profundo. A misericórdia torna a história de Deus com
Israel uma história da salvação. O facto de repetir continuamente
« eterna é a sua misericórdia », como faz o Salmo, parece querer
romper o círculo do espaço e do tempo para inserir tudo no mistério
eterno do amor. É como se se quisesse dizer que o homem, não só na
história mas também pela eternidade, estará sempre sob o olhar
misericordioso do Pai. Não é por acaso que o povo de Israel tenha
querido inserir este Salmo – o « grande hallel », como lhe chamam
– nas festas litúrgicas mais importantes.
Antes
da Paixão, Jesus rezou ao Pai com este Salmo da misericórdia. Assim
o atesta o evangelista Mateus quando afirma que « depois de cantarem
os salmos » (26, 30), Jesus e os discípulos saíram para o Monte
das Oliveiras. Enquanto instituía a Eucaristia, como memorial
perpétuo d’Ele e da sua Páscoa, Jesus colocava simbolicamente
este acto supremo da Revelação sob a luz da misericórdia. No mesmo
horizonte da misericórdia, viveu Ele a sua paixão e morte, ciente
do grande mistério de amor que se realizaria na cruz. O facto de
saber que o próprio Jesus rezou com este Salmo torna-o, para nós
cristãos, ainda mais importante e compromete-nos a assumir o refrão
na nossa oração de louvor diária: « eterna é a sua misericórdia
».
8.
Com o olhar fixo em Jesus e no seu rosto misericordioso, podemos
individuar o amor da Santíssima Trindade. A missão, que Jesus
recebeu do Pai, foi a de revelar o mistério do amor divino na sua
plenitude. « Deus é amor » (1 Jo 4, 8.16): afirma-o, pela primeira
e única vez em toda a Escritura, o evangelista João. Agora este
amor tornou-se visível e palpável em toda a vida de Jesus. A sua
pessoa não é senão amor, um amor que se dá gratuitamente. O seu
relacionamento com as pessoas, que se abeiram d’Ele, manifesta algo
de único e irrepetível. Os sinais que realiza, sobretudo para com
os pecadores, as pessoas pobres, marginalizadas, doentes e
atribuladas, decorrem sob o signo da misericórdia. Tudo n’Ele fala
de misericórdia. N’Ele, nada há que seja desprovido de compaixão.
Vendo
que a multidão de pessoas que O seguia estava cansada e abatida,
Jesus sentiu, no fundo do coração, uma intensa compaixão por elas
(cf. Mt 9, 36). Em virtude deste amor compassivo, curou os doentes
que Lhe foram apresentados (cf. Mt 14, 14) e, com poucos pães e
peixes, saciou grandes multidões (cf. Mt 15, 37). Em todas as
circunstâncias, o que movia Jesus era apenas a misericórdia, com a
qual lia no coração dos seus interlocutores e dava resposta às
necessidades mais autênticas que tinham. Quando encontrou a viúva
de Naim que levava o seu único filho a sepultar, sentiu grande
compaixão pela dor imensa daquela mãe em lágrimas e entregou-lhe
de novo o filho, ressuscitando-o da morte (cf. Lc 7, 15). Depois de
ter libertado o endemoninhado de Gerasa, confia-lhe esta missão: «
Conta tudo o que o Senhor fez por ti e como teve misericórdia de ti
» (Mc 5, 19). A própria vocação de Mateus se insere no horizonte
da misericórdia. Ao passar diante do posto de cobrança dos
impostos, os olhos de Jesus fixaram-se nos de Mateus. Era um olhar
cheio de misericórdia que perdoava os pecados daquele homem e,
vencendo as resistências dos outros discípulos, escolheu-o, a ele
pecador e publicano, para se tornar um dos Doze. São Beda o
Venerável, ao comentar esta cena do Evangelho, escreveu que Jesus
olhou Mateus com amor misericordioso e escolheu-o: miserando atque
eligendo.[7] Sempre me causou impressão esta frase, a ponto de a
tomar para meu lema.
9.
Nas parábolas dedicadas à misericórdia, Jesus revela a natureza de
Deus como a dum Pai que nunca se dá por vencido enquanto não tiver
dissolvido o pecado e superada a recusa com a compaixão e a
misericórdia. Conhecemos estas parábolas, três em especial: as da
ovelha extraviada e da moeda perdida, e a do pai com os seus dois
filhos (cf. Lc 15, 1-32). Nestas parábolas, Deus é apresentado
sempre cheio de alegria, sobretudo quando perdoa. Nelas, encontramos
o núcleo do Evangelho e da nossa fé, porque a misericórdia é
apresentada como a força que tudo vence, enche o coração de amor e
consola com o perdão.
Temos
depois outra parábola da qual tiramos uma lição para o nosso
estilo de vida cristã. Interpelado pela pergunta de Pedro sobre
quantas vezes fosse necessário perdoar, Jesus respondeu: « Não te
digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete » (Mt 18, 22) e
contou a parábola do « servo sem compaixão ». Este, convidado
pelo senhor a devolver uma grande quantia, suplica-lhe de joelhos e o
senhor perdoa-lhe a dívida. Mas, imediatamente depois, encontra
outro servo como ele, que lhe devia poucos centésimos; este
suplica-lhe de joelhos que tenha piedade, mas aquele recusa-se e
fá-lo meter na prisão. Então o senhor, tendo sabido do facto,
zanga-se muito e, convocando aquele servo, diz-lhe: « Não devias
também ter piedade do teu companheiro, como eu tive de ti? » (Mt
18, 33). E Jesus concluiu: « Assim procederá convosco meu Pai
celeste, se cada um de vós não perdoar ao seu irmão do íntimo do
coração » (Mt 18, 35).
A
parábola contém um ensinamento profundo para cada um de nós. Jesus
declara que a misericórdia não é apenas o agir do Pai, mas
torna-se o critério para individuar quem são os seus verdadeiros
filhos. Em suma, somos chamados a viver de misericórdia, porque,
primeiro, foi usada misericórdia para connosco. O perdão das
ofensas torna-se a expressão mais evidente do amor misericordioso e,
para nós cristãos, é um imperativo de que não podemos prescindir.
Tantas vezes, como parece difícil perdoar! E, no entanto, o perdão
é o instrumento colocado nas nossas frágeis mãos para alcançar a
serenidade do coração. Deixar de lado o ressentimento, a raiva, a
violência e a vingança são condições necessárias para se viver
feliz. Acolhamos, pois, a exortação do Apóstolo: « Que o sol não
se ponha sobre o vosso ressentimento » (Ef 4, 26). E sobretudo
escutemos a palavra de Jesus que colocou a misericórdia como um
ideal de vida e como critério de credibilidade para a nossa fé: «
Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia » (Mt
5, 7) é a bem-aventurança a que devemos inspirar-nos, com
particular empenho, neste Ano Santo.
Na
Sagrada Escritura, como se vê, a misericórdia é a palavra-chave
para indicar o agir de Deus para connosco. Ele não Se limita a
afirmar o seu amor, mas torna-o visível e palpável. Aliás, o amor
nunca poderia ser uma palavra abstracta. Por sua própria natureza, é
vida concreta: intenções, atitudes, comportamentos que se verificam
na actividade de todos os dias. A misericórdia de Deus é a sua
responsabilidade por nós. Ele sente-Se responsável, isto é, deseja
o nosso bem e quer ver-nos felizes, cheios de alegria e serenos. E,
em sintonia com isto, se deve orientar o amor misericordioso dos
cristãos. Tal como ama o Pai, assim também amam os filhos. Tal como
Ele é misericordioso, assim somos chamados também nós a ser
misericordiosos uns para com os outros.
10.
A arquitrave que suporta a vida da Igreja é a misericórdia. Toda a
sua acção pastoral deveria estar envolvida pela ternura com que se
dirige aos crentes; no anúncio e testemunho que oferece ao mundo,
nada pode ser desprovido de misericórdia. A credibilidade da Igreja
passa pela estrada do amor misericordioso e compassivo. A Igreja «
vive um desejo inexaurível de oferecer misericórdia ».[8] Talvez,
demasiado tempo, nos tenhamos esquecido de apontar e viver o caminho
da misericórdia. Por um lado, a tentação de pretender sempre e só
a justiça fez esquecer que esta é apenas o primeiro passo,
necessário e indispensável, mas a Igreja precisa de ir mais além a
fim de alcançar uma meta mais alta e significativa. Por outro lado,
é triste ver como a experiência do perdão na nossa cultura vai
rareando cada vez mais. Em certos momentos, até a própria palavra
parece desaparecer. Todavia, sem o testemunho do perdão, resta
apenas uma vida infecunda e estéril, como se se vivesse num deserto
desolador. Chegou de novo, para a Igreja, o tempo de assumir o
anúncio jubiloso do perdão. É o tempo de regresso ao essencial,
para cuidar das fraquezas e dificuldades dos nossos irmãos. O perdão
é uma força que ressuscita para nova vida e infunde a coragem para
olhar o futuro com esperança.
11.
Não podemos esquecer o grande ensinamento que ofereceu São João
Paulo II com a sua segunda encíclica, a Dives in misericordia, que
então surgiu inesperada suscitando a surpresa de muitos pelo tema
que era abordado. Desejo recordar especialmente dois trechos. No
primeiro deles, o Santo Papa assinalava o esquecimento em que caíra
o tema da misericórdia na cultura dos nossos dias: « A mentalidade
contemporânea, talvez mais que a do homem do passado, parece opor-se
ao Deus de misericórdia e, além disso, tende a separar da vida e a
tirar do coração humano a própria ideia da misericórdia. A
palavra e o conceito de misericórdia parecem causar mal-estar ao
homem, o qual, graças ao enorme desenvolvimento da ciência e da
técnica nunca antes verificado na história, se tornou senhor da
terra, a subjugou e a dominou (cf. Gn 1, 28). Um tal domínio sobre a
terra, entendido por vezes unilateral e superficialmente, parece não
deixar espaço para a misericórdia. (...) Por esse motivo, na
hodierna situação da Igreja e do mundo, muitos homens e muitos
ambientes guiados por um vivo sentido de fé, voltam-se quase
espontaneamente, por assim dizer, para a misericórdia de Deus ».[9]
Além
disso, São João Paulo II motivava assim a urgência de anunciar e
testemunhar a misericórdia no mundo contemporâneo: « Ela é ditada
pelo amor para com o homem, para com tudo o que é humano e que,
segundo a intuição de grande parte dos contemporâneos, está
ameaçado por um perigo imenso. O próprio mistério de Cristo (...)
obriga-me igualmente a proclamar a misericórdia como amor
misericordioso de Deus, revelada também no mistério de Cristo. Ele
me impele ainda a apelar para esta misericórdia e a implorá-la
nesta fase difícil e crítica da história da Igreja e do mundo
».[10] Tal ensinamento é hoje mais actual do que nunca e merece ser
retomado neste Ano Santo. Acolhamos novamente as suas palavras: « A
Igreja vive uma vida autêntica quando professa e proclama a
misericórdia, o mais admirável atributo do Criador e do Redentor, e
quando aproxima os homens das fontes da misericórdia do Salvador,
das quais ela é depositária e dispensadora ».[11]
12.
A Igreja tem a missão de anunciar a misericórdia de Deus, coração
pulsante do Evangelho, que por meio dela deve chegar ao coração e à
mente de cada pessoa. A Esposa de Cristo assume o comportamento do
Filho de Deus, que vai ao encontro de todos sem excluir ninguém. No
nosso tempo, em que a Igreja está comprometida na nova
evangelização, o tema da misericórdia exige ser reproposto com
novo entusiasmo e uma acção pastoral renovada. É determinante para
a Igreja e para a credibilidade do seu anúncio que viva e
testemunhe, ela mesma, a misericórdia. A sua linguagem e os seus
gestos, para penetrarem no coração das pessoas e desafiá-las a
encontrar novamente a estrada para regressar ao Pai, devem irradiar
misericórdia.
A
primeira verdade da Igreja é o amor de Cristo. E, deste amor que vai
até ao perdão e ao dom de si mesmo, a Igreja faz-se serva e
mediadora junto dos homens. Por isso, onde a Igreja estiver presente,
aí deve ser evidente a misericórdia do Pai. Nas nossas paróquias,
nas comunidades, nas associações e nos movimentos – em suma, onde
houver cristãos –, qualquer pessoa deve poder encontrar um oásis
de misericórdia.
13.
Queremos viver este Ano Jubilar à luz desta palavra do Senhor:
Misericordiosos como o Pai. O evangelista refere o ensinamento de
Jesus, que diz: « Sede misericordiosos, como o vosso Pai é
misericordioso » (Lc 6, 36). É um programa de vida tão empenhativo
como rico de alegria e paz. O imperativo de Jesus é dirigido a
quantos ouvem a sua voz (cf. Lc 6, 27). Portanto, para ser capazes de
misericórdia, devemos primeiro pôr-nos à escuta da Palavra de
Deus. Isso significa recuperar o valor do silêncio, para meditar a
Palavra que nos é dirigida. Deste modo, é possível contemplar a
misericórdia de Deus e assumi-la como próprio estilo de vida.
14.
A peregrinação é um sinal peculiar no Ano Santo, enquanto ícone
do caminho que cada pessoa realiza na sua existência. A vida é uma
peregrinação e o ser humano é viator, um peregrino que percorre
uma estrada até à meta anelada. Também para chegar à Porta Santa,
tanto em Roma como em cada um dos outros lugares, cada pessoa deverá
fazer, segundo as próprias forças, uma peregrinação. Esta será
sinal de que a própria misericórdia é uma meta a alcançar que
exige empenho e sacrifício. Por isso, a peregrinação há-de servir
de estímulo à conversão: ao atravessar a Porta Santa,
deixar-nos-emos abraçar pela misericórdia de Deus e
comprometer-nos-emos a ser misericordiosos com os outros como o Pai o
é connosco.
O
Senhor Jesus indica as etapas da peregrinação através das quais é
possível atingir esta meta: « Não julgueis e não sereis julgados;
não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados.
Dai e ser-vos-á dado: uma boa medida, cheia, recalcada,
transbordante será lançada no vosso regaço. A medida que usardes
com os outros será usada convosco » (Lc 6, 37-38). Ele começa por
dizer para não julgar nem condenar. Se uma pessoa não quer incorrer
no juízo de Deus, não pode tornar-se juiz do seu irmão. É que os
homens, no seu juízo, limitam-se a ler a superfície, enquanto o Pai
vê o íntimo. Que grande mal fazem as palavras, quando são movidas
por sentimentos de ciúme e inveja! Falar mal do irmão, na sua
ausência, equivale a deixá-lo mal visto, a comprometer a sua
reputação e deixá-lo à mercê das murmurações. Não julgar nem
condenar significa, positivamente, saber individuar o que há de bom
em cada pessoa e não permitir que venha a sofrer pelo nosso juízo
parcial e a nossa pretensão de saber tudo. Mas isto ainda não é
suficiente para se exprimir a misericórdia. Jesus pede também para
perdoar e dar. Ser instrumentos do perdão, porque primeiro o
obtivemos nós de Deus. Ser generosos para com todos, sabendo que
também Deus derrama a sua benevolência sobre nós com grande
magnanimidade.
Misericordiosos
como o Pai é, pois, o « lema » do Ano Santo. Na misericórdia,
temos a prova de como Deus ama. Ele dá tudo de Si mesmo, para
sempre, gratuitamente e sem pedir nada em troca. Vem em nosso
auxílio, quando O invocamos. É significativo que a oração diária
da Igreja comece com estas palavras: « Deus, vinde em nosso auxílio!
Senhor, socorrei-nos e salvai-nos » (Sal 70/69, 2). O auxílio que
invocamos é já o primeiro passo da misericórdia de Deus para
connosco. Ele vem para nos salvar da condição de fraqueza em que
vivemos. E a ajuda d’Ele consiste em fazer-nos sentir a sua
presença e proximidade. Dia após dia, tocados pela sua compaixão,
podemos também nós tornar-nos compassivos para com todos.
15.
Neste Ano Santo, poderemos fazer a experiência de abrir o coração
àqueles que vivem nas mais variadas periferias existenciais, que
muitas vezes o mundo contemporâneo cria de forma dramática. Quantas
situações de precariedade e sofrimento presentes no mundo actual!
Quantas feridas gravadas na carne de muitos que já não têm voz,
porque o seu grito foi esmorecendo e se apagou por causa da
indiferença dos povos ricos. Neste Jubileu, a Igreja sentir-se-á
chamada ainda mais a cuidar destas feridas, aliviá-las com o óleo
da consolação, enfaixá-las com a misericórdia e tratá-las com a
solidariedade e a atenção devidas. Não nos deixemos cair na
indiferença que humilha, na habituação que anestesia o espírito e
impede de descobrir a novidade, no cinismo que destrói. Abramos os
nossos olhos para ver as misérias do mundo, as feridas de tantos
irmãos e irmãs privados da própria dignidade e sintamo-nos
desafiados a escutar o seu grito de ajuda. As nossas mãos apertem as
suas mãos e estreitemo-los a nós para que sintam o calor da nossa
presença, da amizade e da fraternidade. Que o seu grito se torne o
nosso e, juntos, possamos romper a barreira de indiferença que
frequentemente reina soberana para esconder a hipocrisia e o egoísmo.
Não
podemos escapar às palavras do Senhor, com base nas quais seremos
julgados: se demos de comer a quem tem fome e de beber a quem tem
sede; se acolhemos o estrangeiro e vestimos quem está nu; se
reservamos tempo para visitar quem está doente e preso (cf. Mt 25,
31-45). De igual modo ser-nos-á perguntado se ajudamos a tirar da
dúvida, que faz cair no medo e muitas vezes é fonte de solidão; se
fomos capazes de vencer a ignorância em que vivem milhões de
pessoas, sobretudo as crianças desprovidas da ajuda necessária para
se resgatarem da pobreza; se nos detivemos junto de quem está
sozinho e aflito; se perdoamos a quem nos ofende e rejeitamos todas
as formas de ressentimento e ódio que levam à violência; se
tivemos paciência, a exemplo de Deus que é tão paciente connosco;
enfim se, na oração, confiamos ao Senhor os nossos irmãos e irmãs.
Em cada um destes « mais pequeninos », está presente o próprio
Cristo. A sua carne torna-se de novo visível como corpo martirizado,
chagado, flagelado, desnutrido, em fuga ... a fim de ser reconhecido,
tocado e assistido cuidadosamente por nós. Não esqueçamos as
palavras de São João da Cruz: « Ao entardecer desta vida,
examinar-nos-ão no amor ».[12]
16.
No Evangelho de Lucas, encontramos outro aspecto importante para
viver, com fé, o Jubileu. Conta o evangelista que Jesus voltou a
Nazaré e ao sábado, como era seu costume, entrou na sinagoga.
Chamaram-No para ler a Escritura e comentá-la. A passagem era aquela
do profeta Isaías onde está escrito: « O espírito do Senhor Deus
está sobre mim, porque o Senhor me ungiu: enviou-me para levar a
boa-nova aos que sofrem, para curar os desesperados, para anunciar a
libertação aos exilados e a liberdade aos prisioneiros; para
proclamar um ano de misericórdia do Senhor » (61,1-2). « Um ano de
misericórdia »: isto é o que o Senhor anuncia e que nós desejamos
viver. Este Ano Santo traz consigo a riqueza da missão de Jesus que
ressoa nas palavras do Profeta: levar uma palavra e um gesto de
consolação aos pobres, anunciar a libertação a quantos são
prisioneiros das novas escravidões da sociedade contemporânea,
devolver a vista a quem já não consegue ver porque vive curvado
sobre si mesmo, e restituir dignidade àqueles que dela se viram
privados. A pregação de Jesus torna-se novamente visível nas
respostas de fé que o testemunho dos cristãos é chamado a dar.
Acompanhem-nos as palavras do Apóstolo: « Quem pratica a
misericórdia, faça-o com alegria » (Rm 12, 8).
17.
A Quaresma deste Ano Jubilar seja vivida mais intensamente como tempo
forte para celebrar e experimentar a misericórdia de Deus. Quantas
páginas da Sagrada Escritura se podem meditar, nas semanas da
Quaresma, para redescobrir o rosto misericordioso do Pai! Com as
palavras do profeta Miqueias, podemos também nós repetir: Vós,
Senhor, sois um Deus que tira a iniquidade e perdoa o pecado, que não
Se obstina na ira mas Se compraz em usar de misericórdia. Vós,
Senhor, voltareis para nós e tereis compaixão do vosso povo.
Apagareis as nossas iniquidades e lançareis ao fundo do mar todos os
nossos pecados (cf. 7, 18-19).
As
páginas do profeta Isaías poderão ser meditadas, de forma mais
concreta, neste tempo de oração, jejum e caridade. « O jejum que
me agrada é este: libertar os que foram presos injustamente,
livrá-los do jugo que levam às costas, pôr em liberdade os
oprimidos, quebrar toda a espécie de opressão, repartir o teu pão
com os esfomeados, dar abrigo aos infelizes sem casa, atender e
vestir os nus e não desprezar o teu irmão. Então, a tua luz
surgirá como a aurora, e as tuas feridas não tardarão a
cicatrizar-se. A tua justiça irá à tua frente, e a glória do
Senhor atrás de ti. Então invocarás o Senhor e Ele te atenderá,
pedirás auxílio e te dirá: “Aqui estou!” Se retirares da tua
vida toda a opressão, o gesto ameaçador e o falar ofensivo, se
repartires o teu pão com o faminto e matares a fome ao pobre, a tua
luz brilhará na escuridão, e as tuas trevas tornar-se-ão como o
meio-dia. O Senhor te guiará constantemente, saciará a tua alma no
árido deserto, dará vigor aos teus ossos. Serás como um jardim bem
regado, como uma fonte de águas inesgotáveis » (58, 6-11).
A
iniciativa « 24 horas para o Senhor », que será celebrada na
sexta-feira e no sábado anteriores ao IV Domingo da Quaresma, deve
ser incrementada nas dioceses. Há muitas pessoas – e, em grande
número, jovens – que estão a aproximar-se do sacramento da
Reconciliação e que frequentemente, nesta experiência, reencontram
o caminho para voltar ao Senhor, viver um momento de intensa oração
e redescobrir o sentido da sua vida. Com convicção, ponhamos
novamente no centro o sacramento da Reconciliação, porque permite
tocar sensivelmente a grandeza da misericórdia. Será, para cada
penitente, fonte de verdadeira paz interior.
Não
me cansarei jamais de insistir com os confessores para que sejam um
verdadeiro sinal da misericórdia do Pai. Ser confessor não se
improvisa. Tornamo-nos tal quando começamos, nós mesmos, por nos
fazer penitentes em busca do perdão. Nunca esqueçamos que ser
confessor significa participar da mesma missão de Jesus e ser sinal
concreto da continuidade de um amor divino que perdoa e salva. Cada
um de nós recebeu o dom do Espírito Santo para o perdão dos
pecados; disto somos responsáveis. Nenhum de nós é senhor do
sacramento, mas apenas servo fiel do perdão de Deus. Cada confessor
deverá acolher os fiéis como o pai na parábola do filho pródigo:
um pai que corre ao encontro do filho, apesar de lhe ter dissipado os
bens. Os confessores são chamados a estreitar a si aquele filho
arrependido que volta a casa e a exprimir a alegria por o ter
reencontrado. Não nos cansemos de ir também ao encontro do outro
filho, que ficou fora incapaz de se alegrar, para lhe explicar que o
seu juízo severo é injusto e sem sentido diante da misericórdia do
Pai que não tem limites. Não hão-de fazer perguntas impertinentes,
mas como o pai da parábola interromperão o discurso preparado pelo
filho pródigo, porque saberão individuar, no coração de cada
penitente, a invocação de ajuda e o pedido de perdão. Em suma, os
confessores são chamados a ser sempre e por todo o lado, em cada
situação e apesar de tudo, o sinal do primado da misericórdia.
18.
Na Quaresma deste Ano Santo, é minha intenção enviar os
Missionários da Misericórdia. Serão um sinal da solicitude materna
da Igreja pelo povo de Deus, para que entre em profundidade na
riqueza deste mistério tão fundamental para a fé. Serão
sacerdotes a quem darei autoridade de perdoar mesmo os pecados
reservados à Sé Apostólica, para que se torne evidente a amplitude
do seu mandato. Serão sobretudo sinal vivo de como o Pai acolhe a
todos aqueles que andam à procura do seu perdão. Serão
missionários da misericórdia, porque se farão, junto de todos,
artífices dum encontro cheio de humanidade, fonte de libertação,
rico de responsabilidade para superar os obstáculos e retomar a vida
nova do Baptismo. Na sua missão, deixar-se-ão guiar pelas palavras
do Apóstolo: « Deus encerrou a todos na desobediência, para com
todos usar de misericórdia » (Rm 11, 32). Na verdade todos, sem
excluir ninguém, estão chamados a acolher o apelo à misericórdia.
Os missionários vivam esta chamada, sabendo que podem fixar o olhar
em Jesus, « Sumo Sacerdote misericordioso e fiel » (Hb 2, 17).
Peço
aos irmãos bispos que convidem e acolham estes Missionários, para
que sejam, antes de tudo, pregadores convincentes da misericórdia.
Organizem-se, nas dioceses, « missões populares », de modo que
estes Missionários sejam anunciadores da alegria do perdão.
Seja-lhes pedido que celebrem o sacramento da Reconciliação para o
povo, para que o tempo de graça, concedido neste Ano Jubilar,
permita a tantos filhos afastados encontrar de novo o caminho para a
casa paterna. Os pastores, especialmente durante o tempo forte da
Quaresma, sejam solícitos em convidar os fiéis a aproximar-se « do
trono da graça, a fim de alcançar misericórdia e encontrar graça
» (Hb 4, 16).
19.
Que a palavra do perdão possa chegar a todos e a chamada para
experimentar a misericórdia não deixe ninguém indiferente. O meu
convite à conversão dirige-se, com insistência ainda maior,
àquelas pessoas que estão longe da graça de Deus pela sua conduta
de vida. Penso de modo particular nos homens e mulheres que pertencem
a um grupo criminoso, seja ele qual for. Para vosso bem, peço-vos
que mudeis de vida. Peço-vo-lo em nome do Filho de Deus que, embora
combatendo o pecado, nunca rejeitou qualquer pecador. Não caiais na
terrível cilada de pensar que a vida depende do dinheiro e que, à
vista dele, tudo o mais se torna desprovido de valor e dignidade. Não
passa de uma ilusão. Não levamos o dinheiro connosco para o além.
O dinheiro não nos dá a verdadeira felicidade. A violência usada
para acumular dinheiro que transuda sangue não nos torna poderosos
nem imortais. Para todos, mais cedo ou mais tarde, vem o juízo de
Deus, do qual ninguém pode escapar.
O
mesmo convite chegue também às pessoas fautoras ou cúmplices de
corrupção. Esta praga putrefacta da sociedade é um pecado grave
que brada aos céus, porque mina as próprias bases da vida pessoal e
social. A corrupção impede de olhar para o futuro com esperança,
porque, com a sua prepotência e avidez, destrói os projectos dos
fracos e esmaga os mais pobres. É um mal que se esconde nos gestos
diários para se estender depois aos escândalos públicos. A
corrupção é uma contumácia no pecado, que pretende substituir
Deus com a ilusão do dinheiro como forma de poder. É uma obra das
trevas, alimentada pela suspeita e a intriga. Corruptio optimi
pessima: dizia, com razão, São Gregório Magno, querendo indicar
que ninguém pode sentir-se imune desta tentação. Para a erradicar
da vida pessoal e social são necessárias prudência, vigilância,
lealdade, transparência, juntamente com a coragem da denúncia. Se
não se combate abertamente, mais cedo ou mais tarde torna-nos
cúmplices e destrói-nos a vida.
Este
é o momento favorável para mudar de vida! Este é o tempo de se
deixar tocar o coração. Diante do mal cometido, mesmo crimes
graves, é o momento de ouvir o pranto das pessoas inocentes
espoliadas dos bens, da dignidade, dos afectos, da própria vida.
Permanecer no caminho do mal é fonte apenas de ilusão e tristeza. A
verdadeira vida é outra coisa. Deus não se cansa de estender a mão.
Está sempre disposto a ouvir, e eu também estou, tal como os meus
irmãos bispos e sacerdotes. Basta acolher o convite à conversão e
submeter-se à justiça, enquanto a Igreja oferece a misericórdia.
20.
Neste contexto, não será inútil recordar a relação entre justiça
e misericórdia. Não são dois aspectos em contraste entre si, mas
duas dimensões duma única realidade que se desenvolve gradualmente
até atingir o seu clímax na plenitude do amor. A justiça é um
conceito fundamental para a sociedade civil, normalmente quando se
faz referimento a uma ordem jurídica através da qual se aplica a
lei. Por justiça entende-se também que a cada um deve ser dado o
que lhe é devido. Na Bíblia, alude-se muitas vezes à justiça
divina, e a Deus como juiz. Habitualmente é entendida como a
observância integral da Lei e o comportamento de todo o bom judeu
conforme aos mandamentos dados por Deus. Esta visão, porém, levou
não poucas vezes a cair no legalismo, mistificando o sentido
original e obscurecendo o valor profundo que a justiça possui. Para
superar a perspectiva legalista, seria preciso lembrar que, na
Sagrada Escritura, a justiça é concebida essencialmente como um
abandonar-se confiante à vontade de Deus.
Por
sua vez, Jesus fala mais vezes da importância da fé que da
observância da lei. É neste sentido que devemos compreender as suas
palavras, quando, encontrando-Se à mesa com Mateus e outros
publicanos e pecadores, disse aos fariseus que O acusavam por isso
mesmo: « Ide aprender o que significa: Prefiro a misericórdia ao
sacrifício. Porque Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores »
(Mt 9, 13). Diante da visão duma justiça como mera observância da
lei, que julga dividindo as pessoas em justos e pecadores, Jesus
procura mostrar o grande dom da misericórdia que busca os pecadores
para lhes oferecer o perdão e a salvação. Compreende-se que Jesus,
por causa desta sua visão tão libertadora e fonte de renovação,
tenha sido rejeitado pelos fariseus e os doutores da lei. Estes, para
ser fiéis à lei, limitavam-se a colocar pesos sobre os ombros das
pessoas, anulando porém a misericórdia do Pai. O apelo à
observância da lei não pode obstaculizar a atenção às
necessidades que afectam a dignidade das pessoas.
A
propósito, é muito significativo o apelo que Jesus faz ao texto do
profeta Oseias: « Eu quero a misericórdia e não os sacrifícios »
(6, 6). Jesus afirma que, a partir de agora, a regra de vida dos seus
discípulos deverá ser aquela que prevê o primado da misericórdia,
como Ele mesmo dá testemunho partilhando a refeição com os
pecadores. A misericórdia revela-se, mais uma vez, como dimensão
fundamental da missão de Jesus. É um verdadeiro desafio posto aos
seus interlocutores, que se contentavam com o respeito formal da lei.
Jesus, pelo contrário, vai além da lei, a sua partilha da mesa com
aqueles que a lei considerava pecadores permite compreender até onde
chega a sua misericórdia.
Também
o apóstolo Paulo fez um percurso semelhante. Antes de encontrar
Cristo no caminho de Damasco, a sua vida era dedicada a servir de
maneira irrepreensível a justiça da lei (cf. Fl 3, 6). A conversão
a Cristo levou-o a inverter a sua visão, a ponto de afirmar na Carta
aos Gálatas: « Também nós acreditámos em Cristo Jesus, para
sermos justificados pela fé em Cristo e não pelas obras da lei »
(2, 16). A sua compreensão da justiça muda radicalmente: Paulo
agora põe no primeiro lugar a fé, e já não a lei. Não é a
observância da lei que salva, mas a fé em Jesus Cristo, que, pela
sua morte e ressurreição, traz a salvação com a misericórdia que
justifica. A justiça de Deus torna-se agora a libertação para
quantos estão oprimidos pela escravidão do pecado e todas as suas
consequências. A justiça de Deus é o seu perdão (cf. Sl 51/50,
11-16).
21.
A misericórdia não é contrária à justiça, mas exprime o
comportamento de Deus para com o pecador, oferecendo-lhe uma nova
possibilidade de se arrepender, converter e acreditar. A experiência
do profeta Oseias ajuda-nos, mostrando-nos a superação da justiça
na linha da misericórdia. A época em que viveu este profeta
conta-se entre as mais dramáticas da história do povo judeu. O
Reino está próximo da destruição; o povo não permaneceu fiel à
aliança, afastou-se de Deus e perdeu a fé dos pais. Segundo uma
lógica humana, é justo que Deus pense em rejeitar o povo infiel:
não observou o pacto estipulado e, consequentemente, merece a devida
pena, ou seja, o exílio. Assim o atestam as palavras do profeta: «
Não voltará para o Egipto, mas a Assíria será o seu rei, porque
recusaram converter-se » (Os 11, 5). E todavia, depois desta reacção
que faz apelo à justiça, o profeta muda radicalmente a sua
linguagem e revela o verdadeiro rosto de Deus: « O meu coração dá
voltas dentro de mim, comovem-se as minhas entranhas. Não
desafogarei o furor da minha cólera, não voltarei a destruir
Efraim; porque sou Deus e não um homem, sou o Santo no meio de ti e
não me deixo levar pela ira » (11, 8-9). Santo Agostinho, de certo
modo comentando as palavras do profeta, diz: « É mais fácil que
Deus contenha a ira do que a misericórdia ».[13] É mesmo assim! A
ira de Deus dura um instante, ao passo que a sua misericórdia é
eterna.
Se
Deus Se detivesse na justiça, deixaria de ser Deus; seria como todos
os homens que clamam pelo respeito da lei. A justiça por si só não
é suficiente, e a experiência mostra que, limitando-se a apelar
para ela, corre-se o risco de a destruir. Por isso Deus, com a
misericórdia e o perdão, passa além da justiça. Isto não
significa desvalorizar a justiça ou torná-la supérflua. Antes pelo
contrário! Quem erra, deve descontar a pena; só que isto não é o
fim, mas o início da conversão, porque se experimenta a ternura do
perdão. Deus não rejeita a justiça. Ele engloba-a e supera-a num
evento superior onde se experimenta o amor, que está na base duma
verdadeira justiça. Devemos prestar muita atenção àquilo que
escreve Paulo, para não cair no mesmo erro que o apóstolo censurava
nos judeus seus contemporâneos: « Por não terem reconhecido a
justiça que vem de Deus e terem procurado estabelecer a sua própria
justiça, não se submeteram à justiça de Deus. É que o fim da Lei
é Cristo, para que, deste modo, a justiça seja concedida a todo o
que tem fé » (Rm 10, 3-4). Esta justiça de Deus é a misericórdia
concedida a todos como graça, em virtude da morte e ressurreição
de Jesus Cristo. Portanto a Cruz de Cristo é o juízo de Deus sobre
todos nós e sobre o mundo, porque nos oferece a certeza do amor e da
vida nova.
22.
O Jubileu inclui também o referimento à indulgência. Esta, no Ano
Santo da Misericórdia, adquire uma relevância particular. O perdão
de Deus para os nossos pecados não conhece limites. Na morte e
ressurreição de Jesus Cristo, Deus torna evidente este seu amor que
chega ao ponto de destruir o pecado dos homens. É possível
deixar-se reconciliar com Deus através do mistério pascal e da
mediação da Igreja. Por isso, Deus está sempre disponível para o
perdão, não Se cansando de o oferecer de maneira sempre nova e
inesperada. No entanto todos nós fazemos experiência do pecado.
Sabemos que somos chamados à perfeição (cf. Mt 5, 48), mas
sentimos fortemente o peso do pecado. Ao mesmo tempo que notamos o
poder da graça que nos transforma, experimentamos também a força
do pecado que nos condiciona. Apesar do perdão, carregamos na nossa
vida as contradições que são consequência dos nossos pecados. No
sacramento da Reconciliação, Deus perdoa os pecados, que são
verdadeiramente apagados; mas o cunho negativo que os pecados
deixaram nos nossos comportamentos e pensamentos permanece. A
misericórdia de Deus, porém, é mais forte também do que isso. Ela
torna-se indulgência do Pai que, através da Esposa de Cristo,
alcança o pecador perdoado e liberta-o de qualquer resíduo das
consequências do pecado, habilitando-o a agir com caridade, a
crescer no amor em vez de recair no pecado.
A
Igreja vive a comunhão dos Santos. Na Eucaristia, esta comunhão,
que é dom de Deus, realiza-se como união espiritual que nos une, a
nós crentes, com os Santos e Beatos cujo número é incalculável
(Ap 7, 4). A sua santidade vem em ajuda da nossa fragilidade, e assim
a Mãe-Igreja, com a sua oração e a sua vida, é capaz de acudir à
fraqueza de uns com a santidade de outros. Portanto viver a
indulgência no Ano Santo significa aproximar-se da misericórdia do
Pai, com a certeza de que o seu perdão cobre toda a vida do crente.
A indulgência é experimentar a santidade da Igreja que participa em
todos os benefícios da redenção de Cristo, para que o perdão se
estenda até às últimas consequências aonde chega o amor de Deus.
Vivamos intensamente o Jubileu, pedindo ao Pai o perdão dos pecados
e a indulgência misericordiosa em toda a sua extensão.
23.
A misericórdia possui uma valência que ultrapassa as fronteiras da
Igreja. Ela relaciona-nos com o judaísmo e o islamismo, que a
consideram um dos atributos mais marcantes de Deus. Israel foi o
primeiro que recebeu esta revelação, permanecendo esta na história
como o início duma riqueza incomensurável para oferecer à
humanidade inteira. Como vimos, as páginas do Antigo Testamento
estão permeadas de misericórdia, porque narram as obras que o
Senhor realizou em favor do seu povo, nos momentos mais difíceis da
sua história. O islamismo, por sua vez, coloca entre os nomes dados
ao Criador o de Misericordioso e Clemente. Esta invocação aparece
com frequência nos lábios dos fiéis muçulmanos, que se sentem
acompanhados e sustentados pela misericórdia na sua fraqueza diária.
Também eles acreditam que ninguém pode pôr limites à misericórdia
divina, porque as suas portas estão sempre abertas.
Possa
este Ano Jubilar, vivido na misericórdia, favorecer o encontro com
estas religiões e com as outras nobres tradições religiosas; que
ele nos torne mais abertos ao diálogo, para melhor nos conhecermos e
compreendermos; elimine todas as formas de fechamento e desprezo e
expulse todas as formas de violência e discriminação.
24.
O pensamento volta-se agora para a Mãe da Misericórdia. A doçura
do seu olhar nos acompanhe neste Ano Santo, para podermos todos nós
redescobrir a alegria da ternura de Deus. Ninguém, como Maria,
conheceu a profundidade do mistério de Deus feito homem. Na sua
vida, tudo foi plasmado pela presença da misericórdia feita carne.
A Mãe do Crucificado Ressuscitado entrou no santuário da
misericórdia divina, porque participou intimamente no mistério do
seu amor.
Escolhida
para ser a Mãe do Filho de Deus, Maria foi preparada desde sempre,
pelo amor do Pai, para ser Arca da Aliança entre Deus e os homens.
Guardou, no seu coração, a misericórdia divina em perfeita
sintonia com o seu Filho Jesus. O seu cântico de louvor, no limiar
da casa de Isabel, foi dedicado à misericórdia que se estende « de
geração em geração » (Lc 1, 50). Também nós estávamos
presentes naquelas palavras proféticas da Virgem Maria. Isto
servir-nos-á de conforto e apoio no momento de atravessarmos a Porta
Santa para experimentar os frutos da misericórdia divina.
Ao
pé da cruz, Maria, juntamente com João, o discípulo do amor, é
testemunha das palavras de perdão que saem dos lábios de Jesus. O
perdão supremo oferecido a quem O crucificou, mostra-nos até onde
pode chegar a misericórdia de Deus. Maria atesta que a misericórdia
do Filho de Deus não conhece limites e alcança a todos, sem excluir
ninguém. Dirijamos-Lhe a oração, antiga e sempre nova, da Salve
Rainha, pedindo-Lhe que nunca se canse de volver para nós os seus
olhos misericordiosos e nos faça dignos de contemplar o rosto da
misericórdia, seu Filho Jesus.
E
a nossa oração estenda-se também a tantos Santos e Beatos que
fizeram da misericórdia a sua missão vital. Em particular, o
pensamento volta-se para a grande apóstola da Misericórdia, Santa
Faustina Kowalska. Ela, que foi chamada a entrar nas profundezas da
misericórdia divina, interceda por nós e nos obtenha a graça de
viver e caminhar sempre no perdão de Deus e na confiança inabalável
do seu amor.
25.
Será, portanto, um Ano Santo extraordinário para viver, na
existência de cada dia, a misericórdia que o Pai, desde sempre,
estende sobre nós. Neste Jubileu, deixemo-nos surpreender por Deus.
Ele nunca Se cansa de escancarar a porta do seu coração, para
repetir que nos ama e deseja partilhar connosco a sua vida. A Igreja
sente, fortemente, a urgência de anunciar a misericórdia de Deus. A
sua vida é autêntica e credível, quando faz da misericórdia seu
convicto anúncio. Sabe que a sua missão primeira, sobretudo numa
época como a nossa cheia de grandes esperanças e fortes
contradições, é a de introduzir a todos no grande mistério da
misericórdia de Deus, contemplando o rosto de Cristo. A Igreja é
chamada, em primeiro lugar, a ser verdadeira testemunha da
misericórdia, professando-a e vivendo-a como o centro da Revelação
de Jesus Cristo. Do coração da Trindade, do íntimo mais profundo
do mistério de Deus, brota e flui incessantemente a grande torrente
da misericórdia. Esta fonte nunca poderá esgotar-se, por maior que
seja o número daqueles que dela se abeirem. Sempre que alguém tiver
necessidade poderá aceder a ela, porque a misericórdia de Deus não
tem fim. Quanto insondável é a profundidade do mistério que
encerra, tanto é inesgotável a riqueza que dela provém.
Neste
Ano Jubilar, que a Igreja se faça eco da Palavra de Deus que ressoa,
forte e convincente, como uma palavra e um gesto de perdão, apoio,
ajuda, amor. Que ela nunca se canse de oferecer misericórdia e seja
sempre paciente a confortar e perdoar. Que a Igreja se faça voz de
cada homem e mulher e repita com confiança e sem cessar: «
Lembra-te, Senhor, da tua misericórdia e do teu amor, pois eles
existem desde sempre » (Sl 25/24, 6).
Dado
em Roma, junto de São Pedro, no dia 11 de Abril – véspera do II
Domingo de Páscoa ou da Divina Misericórdia – do Ano do Senhor de
2015, o terceiro de pontificado.
Francisco
[1]
Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. Dei Verbum, 4.
[2]
Discurso de abertura do Concílio Ecuménico Vaticano II, Gaudet
Mater Ecclesia (11 de Outubro de 1962), 2-3.
[3]
Alocução na última sessão pública (7 de Dezembro de 1965).
[4]
Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. Lumen gentium, 16; Const. past.
Gaudium et spes, 15.
[5]Tomás
de Aquino, Summa theologiae, II-II, q. 30, a. 4.
[6]
Domingo XXVI do Tempo Comum. Esta colecta já aparece, no séc. VIII,
entre os textos eucológios do Sacramentário Gelasiano (1198).
[7]
Cf. Homilia 21: CCL 122, 149-151.
[8]
Exort. ap. Evangelii gaudium, 24.
[9]
João Paulo II, Carta enc. Dives in misericordia, 2.
[10]
Ibid., 15.
[11]
Ibid., 13.
[12]
Ditos de luz e amor, 57.
[13]
Enarratio in Psalmos, 76, 11.
Fontes:
Santa Sé; Rádio Vaticano
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