Em
entrevista à televisão católica francesa KTO, D. Manuel Clemente
aponta a família como local para o “desenvolvimento do
cristianismo” e recorda a experiência em acompanhar casais, ao
longo da sua vida sacerdotal.
Transcrição da entrevista difundida no passado dia 8 de Outubro pela KTO:
Bom
dia.
Bom
dia a si e a todos os telespectadores da KTO. Saúdo-os com prazer
porque também sou um espectador das emissões da KTO, de que gosto
muito.
Obrigado
por nos conceder este tempo, nestes dias que são tão cheios. É
Patriarca de Lisboa, desde 2013, e presidente da Conferência
Episcopal de Portugal, igualmente há dois anos, e participou, no ano
passado, na primeira sessão do Sínodo Extraordinário. E eis que
está nesta segunda sessão do Sínodo dos Bispos.
O
Papa lembrou que não se tratava de uma assembleia parlamentar ou de
uma sessão de um partido político. Isto quer dizer que não estão
à procura de encontrar uma maioria?
Não
é tanto isso. Porque a maioria de fundo já a temos. Somos todos
cristãos e Bispos também, com a obrigação de manter e desenvolver
o que podemos da tradição da Igreja que não começou connosco.
Começou, há dois mil anos, com Jesus, que é o primeiro. E agora
nós, como Bispos, sucessores dos apóstolos, temos esta missão de
manter positivamente a tradição da Igreja e de lhe sermos fiéis.
Não é qualquer coisa que podemos escolher mas que devemos manter,
manter neste tempo, com os problemas deste tempo, porque acreditamos
todos que o que Cristo fez, o que Cristo indicou, serve para hoje
como servia para aquele tempo. Por isso, devo procurar manter,
apresentar, desenvolver, a tradição da Igreja e do Evangelho para
este tempo.
Há
diferenças de abordagem que são normais. Mas como é que se faz
quando não se está verdadeiramente de acordo com quem está sentado
ao nosso lado, para manter o que na Igreja se chama a ‘comunhão’?
Volto
sempre ao principio. Volto sempre a Cristo, aos Evangelhos, à
mensagem do Novo Testamento para ver como esta mensagem se pode
reflectir nos problemas de hoje. Chegamos sempre lá. Falando, vendo
melhor, as perspectivas que cada um tem e transporta também com a
sua experiência.
Quer
dizer que podemos ser contrários nas questões, sem sermos inimigos?
Como
dentro de uma família. Estamos, ficamos e continuamos... como uma
família.
A
família é, precisamente, o objectivo dos vossos trabalhos. Tema
central da vida da Igreja, é um tema que lhe é muito caro.
Sublinho, por exemplo para os nossos telespectadores que não saibam,
que na Missa em que tomou posse do título de Patriarca de Lisboa, em
Junho de 2013, dedicou uma larga parte da homilia à família.
Absolutamente.
Vejamos, talvez não tenhamos um ponto muito presente, mas é
necessário. O Evangelho começou numa família. É muito importante.
Para nós cristãos, a revelação de Deus, é a vida de Jesus. A
vida de Jesus é uma vida de família. Durante trinta anos, desde
Belém, ao Egipto, a Nazaré da Galileia, tudo isto é a família.
Tinha a sua mãe, tinha o seu pai adoptivo, os seus parentes, tinha
os seus lugares. Ia à Sinagoga, ao sábado, como bom judeu que era.
Trabalha também, em colaboração com José, na profissão que ele
tinha. Tudo isto é família. É uma vida muito normal... mas cheia -
nós acreditamos - de Deus. Porque Deus, estava lá, na vida de
Jesus. E quando partiu de Nazaré da Galileia, para pregar o ‘Reino’,
ele chamava o ‘Reino de Deus’. Ele fê-lo também numa linguagem
de família. Apresentava-se como o ‘Esposo’... os outros ‘são
irmãos’. Às vezes com um sentimento maternal, como quando Ele
diz: “(quantas vezes quis eu juntar os teus filhos), como a galinha
recolhe os seus pintos debaixo das asas” (cf. Mt 23, 37). Tudo isto
é muito familiar. Jesus partiu de uma experiência familiar como
filho, como irmão, que era, em Nazaré, e sublinhou. Ele alargou a
sua experiência e a sua linguagem à família dos que o seguiam.
Então, nós devemos considerar a família como o lugar onde a Igreja
também se compreende a si própria, como a família dos filhos de
Deus. Nós vemos nas comunidades primitivas, nos escritos de Paulo, a
família. A casa deste, daquele, era o ambiente, o lugar, onde a
comunidade cristã se desenvolvia. Por exemplo, este casal de Áquila
e Priscila, é muito importante, em Corinto, na época. Quando fala,
por exemplo, a Timóteo, diz “a fé que habitou primeiro em tua
avó, e em tua mãe” (cf. 2 Tim 1, 5). Portanto, vemos que a
família é o local, por excelência, de desenvolvimento do próprio
cristianismo.
Com
esta dificuldade particular deste tempo, Eminência, lembro que o
tema, nesta primeira semana, é estudar os desafios que se oferecem à
família. Talvez esta família de que falamos, seja, cada vez menos,
um modelo frequente na sociedade. Isto também é verdade para o
Portugal de hoje?
Vejamos...
No principio também era assim. A família como Jesus a vivia e como
Jesus a propunha, não era a família que se via em todo lado, nem
Israel, e sobretudo, em Roma, ou na Grécia. Havia o divórcio, havia
tudo isso. Jesus propôs uma outra família. Porque dizia: “O homem
e a mulher serão um só”. E “que não separe o homem, o que Deus
uniu”. Então, é uma novidade. Uma novidade que retoma a intenção
de Deus, o principio absoluto que Jesus propõe. E assim, nós
devemos fixar este ponto: o Evangelho e o que Jesus nos oferece é
uma novidade absoluta. Era uma novidade naquele tempo e é uma
novidade hoje. Isto quer dizer que nós devemos descobrir, neste
tempo, a própria novidade do cristianismo, não é logo a família,
mas a vida cristã.
Isto
é muito difícil para países cristãos...
É
difícil porque nós pensávamos: nós somos herdeiros das velhas
cristandades, então é tudo cristão. Mas é tudo cristão de
verdade? O que é ser cristão de verdade? Então, para ser cristão
devemos descobrir na comunidade cristã, na experiência cristã e no
testemunho cristão que é uma coisa nova. É verdadeiramente nova.
Isto exige uma metanoia, conversão, absolutamente. Não é uma
tradição social ou cultural. É uma novidade e isto é que as
famílias cristãs devem, não somente viver, mas oferecer às
pessoas, para reconstrução, digamos, da própria sociedade.
Está
a propor, na realidade, uma inversão completa da impressão geral.
Temos a impressão de que o modelo de família cristã é,
finalmente, um modelo patriarcal, histórico, antigo, desconhecido e,
hoje, ultrapassado. Diz, pelo contrário, que é uma proposta
revolucionária e nova...
Como
por exemplo São Paulo dizia aos Gálatas, “não há homem, nem
mulher” (cf. Gál 3, 28), nem no sentido da diferença e muito
menos da opressão. Então, nesta vida de partilha que é
experimentada no casal, com os seus filhos e os seus netos, todos são
como um só. Isto vai ser também o principio de uma sociedade nova,
familiar também.
Eminência,
o desafio do Sínodo é descobrir propostas pastorais e saber como
propor esta novidade e como ir ao encontro dos nossos contemporâneos.
Nesta primeira semana, todos estudam em conjunto os desafios sobre a
família. O seu país, Portugal, conheceu, talvez, de modo muito
rápido e brutal do que a França, Bélgica, a Suiça ou outro país,
a mudança completa do que existia, nomeadamente, no que diz respeito
à família. Pode-nos dizer o que identifica como desafios relativos
à família, em Portugal?
Uma
sociedade que não é tanto sociedade. Sociedade quer dizer um mundo,
onde somos companheiros (socius, em Latim > Sociedade) uns dos
outros. Nós não somos só isso porque as pessoas viviam, sobretudo,
no mundo rural com os seus ritmos, as suas vizinhanças muito
estabelecidas ao longo de gerações e gerações e isto já não é
assim. Vêm para as grandes cidades, como por exemplo, Lisboa, com os
seus arredores. Falamos já de 2,5 milhões ou mais, de habitantes.
Vêm de Portugal, vêm um pouco do mundo. Vêm de África, da Ásia.
Então, eles deixaram os seus hábitos tradicionais, os lugares, onde
estavam estabelecidos e se sentiam próximos, naturalmente próximos
dos outros. Agora não é assim. Agora, na própria família o pai
está aqui ou o pai não está porque emigrou, ou a mãe também. Ou
o casal não está legalizado, nem civil, nem sacramentalmente. Este
facto levanta um problema. Levanta problemas às famílias como tais,
que querem manter a tradição cristã - como nós dissemos - que é
uma vida de casal: homem, mulher, filhos, netos, também com os
familiares mais velhos... sobretudo para as famílias cristãs.
Graças a Deus, temo-las, porque quando falamos de problemas, às
vezes, não estamos a ver tanto as soluções que já existem... E
são as soluções que as famílias cristãs, nestes tempos,
apresentam verdadeiramente. Algumas são também missionárias e vão
para fora, para mostrar que a família cristã é uma possibilidade e
é uma possibilidade que integra. Que não deixa ninguém fora do
conjunto e só.
Há
um ponto que já foi sublinhado no início deste Sínodo e que já
foi falado no do ano passado: é muito importante que saibamos
interrogarmo-nos sobre o modo de ir ao encontro das famílias
feridas, ou em dificuldade, mas não esquecer de anunciar o evangelho
da família, de acompanhar as famílias que tentam viver como
famílias cristãs.
Sim,
que procuram... e são muitas. Para mim, uma experiência muito feliz
durante toda a minha vida sacerdotal, foi ter acompanhado casais de
cristãos e de ter visto como estes casais e estas famílias avançam,
com as dificuldades, como toda a gente, mas querem responder e
encontram respostas. Respostas muito adaptadas e criativas para
viver, neste mundo, a realidade da família cristã. É muito
interessante. Creio que estou tão convencido disto porque eu vejo. É
a experiência.
É
mais difícil para estas famílias de hoje, do que em outras épocas?
Não
podemos comparar porque noutras épocas éramos aquilo porque não
podíamos ser outra coisa. Eram sociedades muito localizadas,
heranças muito fixas, aldeias e cidades que se mantinham como tinham
sido. Tudo isto estava muito definido. O problema não se punha. Não
se podia ser de outra maneira. Na sociedade em que vivemos, com a
destruição destas relações tradicionais, todos estes desafios se
colocam e então, a família cristã, mostra mais do que nunca, a sua
vitalidade.
Os
jovens em Portugal, como no resto da Europa, hesitam, muito mais do
que antes, para casar e para se comprometerem?
Conto-lhe
a minha experiência. Eu disse que era assistente de famílias
cristãs durante toda a minha vida sacerdotal. E as famílias que
acompanhei quando comecei já são avós. E agora, quando voltei para
Lisboa, quero também ter famílias cristãs mas que se casaram
recentemente. Pessoas de 20, 30 anos... É muito curioso ver que têm
a mesma força interior, a mesma vontade de ser cristãos na família
que tinham aqueles que acompanhei, há 30 anos.
São
em menor número?
Não
tanto. Nós temos dificuldade de ter assistentes para todas estas
famílias, para todos estes grupos que se formam. Temos dificuldade
porque é uma outra geração que vê e compreende, talvez melhor,
por causa do que falávamos, que a família cristã é
verdadeiramente uma escolha e que devemos manter.
O
contexto económico pesa na escolha dos jovens e na possibilidade das
famílias? Justamente para os jovens se casarem e para as famílias
educarem as suas crianças...
O
contexto económico é, para os jovens, muito importante. Em Portugal
é um problema porque temos uma emigração muito grande... para
França, Inglaterra, Alemanha, e são jovens que partem com muitas
habilitações. Muitos com títulos universitários que vão para
fora e o casal se separa. Mantêm-se com twitter e outros meios... e
reencontram-se quando podem, ou então reúnem-se lá fora... É
outro problema, um problema do nosso tempo.
No
trabalho do Sínodo há uma espécie de tensão entre o desejo de
preservar o anúncio do Evangelho da família e a doutrina da Igreja
porque ela pensa que é um modo de felicidade e o facto de ir ao
encontro de todos os outros, de todos aqueles que hoje não receberam
esta mensagem ou que talvez se sintam excluídos porque não
correspondem ao modelo...
Eu
creio que isto se passa com a vida da família e com todos os outros
aspectos da vida porque há uma proposta cristã. Há aqueles que a
querem seguir e aqueles que já não a seguem. Não é só na vida
familiar. É na vida familiar, económica, social, política. Então,
mantemos a proposta, estamos próximos daqueles que estão connosco e
daqueles que não estão. Mas, como dizia um autor do principio do
cristianismo, ‘estamos aqui para dizer com boa vontade e esperança
as razões que são as nossas’. Propomo-las, vivemo-las,
oferecemo-las. Queremos ser o sal da terra, não é?
Espera
voltar deste sínodo com ideias novas e propostas para ir ao
encontro, precisamente, daqueles que, hoje, não estão na Igreja?
Sobretudo
creio, e insistirei nisso, na recomposição, reconfiguração da
nossa comunidade em chave familiar, numa perspectiva familiar. Porque
é completamente diferente dizer que há duzentos, trezentos, dois
mil, três mil católicos praticantes ou dizer ‘tenho cinquenta,
cento e cinquenta famílias que são compostas por este, por
aquela’... É completamente diferente. A organização das
comunidades na base da família ou, em geral, como indivíduos, ou
como números indistintos, é completamente diferente. Isto quer
dizer uma preparação para o matrimónio muito cuidada, começando
na adolescência, desenvolvendo sentimentos de generosidade, de estar
com o outro e para o outro, sem egoísmo, junto dos noivos, depois,
junto dos casados, muito, muito acompanhada pela comunidade cristã,
tanto na alegria como nas dificuldades. Depois, a catequese, onde
entra a família, junto dos seus filhos e dos filhos dos outros.
Depois, os movimentos, depois isto tudo, depois a liturgia, a
caridade... Isto faz-se em chave familiar ou individual? É
completamente diferente.
Então,
nesta concepção da comunidade como no tempo dos Actos dos
Apóstolos, como comunidade de famílias, que lugar para os que são
celibatários ou que estão em situação familiar não canónica -
como diz a Igreja?
Também
têm o seu lugar. Quando são baptizados
e vêm à comunidade cristã devem ser recebidos, da parte da
comunidade, com uma atitude de acolhimento porque também fazem parte
da família.
Fala-se
muito, como no caso do seu trabalho (pastoral), da importância do
acompanhamento dos padres, dos pastores, junto das famílias. Tenho
vontade de lhe perguntar se isto também funciona no sentido inverso.
Há um papel de acompanhamento das famílias juntos dos padres?
Sim,
absolutamente! Os documentos recentes dizem que na formação
sacerdotal se deve contar com a participação das famílias e de
casais cristãos. Porque devemos retomar o que tínhamos no começo,
como falámos sobre São Paulo e os outros, retomar a colaboração
entre o apóstolo e o casal, o apóstolo e as famílias. Isso forma a
Igreja. É na ligação das duas realidades que se pode refazer a
Igreja.
Em
Portugal, como no resto do mundo, este sínodo suscitou muitos medos.
Para alguns, o medo que se deixe a doutrina e, para outros, o medo de
que não se chegue a nada de novo. O que diz àqueles que nos vêem e
que talvez rezam pelo Sínodo e que talvez tenham medo?
Quero
dizer e repetir que é uma realidade da Igreja e que tem um sujeito,
a Igreja. A Igreja não começa agora. A Igreja é uma realidade nova
que nos foi dada há dois mil anos e que é a finalidade das coisas.
Quando Cristo anunciava o Reino, dizia que era o fim dos tempos.
Então, creio que a ultima coisa que podemos e devemos dizer é esta
coisa que Cristo nos ofereceu. E também para a família, tudo o que
Cristo anunciou sobre o matrimónio e o casal cristão. É esta
realidade nova. Então, o assunto é este. O assunto do Sínodo é a
própria Igreja, como Cristo a constituiu e a mantém. Quando não se
parte daqui, do sujeito eclesial do Sínodo, podemos ficar, como
descreveu: “não era o que nós acreditávamos... Não era aquilo
por que estávamos à espera...”. Mas nós acreditamos e estamos à
espera destas coisas que são a própria Igreja ou de outras? Porque
outras coisas, têm outras respostas dadas também por outras
pessoas. Isto é a Igreja.
Acredita
que Espírito Santo ajuda a conduzir os trabalhos?
Sim!
Também me convenço. O Espírito mostra-me, na experiência cristã,
no serviço cristão dos casais, nos meus colegas que também
acompanham casais e famílias, que isto funciona.
Não
é o seu primeiro Sínodo. A titulo pessoal, na sua vida de fé e de
pastor é uma experiência pessoal e importante?
Muito
importante. Como São Paulo dizia quando foi a Jerusalém falar com
os outros apóstolos, para todos andarem para a frente mas de acordo
com a tradição, como eles fizeram. Quando estou com os meus colegas
de outros países, de outros continentes, vejo a validade da resposta
cristã essencial, aqui e lá, com todas as diferenças, mas
essencialmente a mesma.
Foi
muito marcado pelo documento do Papa Francisco, “A alegria do
Evangelho”. Fazem aqui uma experiência comum da “Alegria do
Evangelho, apesar das tensões e das dificuldades?
Sim,
porque a alegria é uma alegria Pascal. Não é uma alegria
simplesmente natural, espontânea mas é uma alegria que vem da vida
de Cristo que recebemos todos e que nos dá Vida.
Uma
ultima palavra, antes de terminarmos. O Papa pede-nos e muitos de
vós, Bispos, pedem aos fiéis da Igreja que rezemos por este Sínodo
e pelos seus trabalhos. Que intenções de oração gostaria de dar?
Que
procuremos e encontremos as palavras, as atitudes, as respostas que o
Espírito de Cristo quer. Isto faz-se pela oração porque a oração
abre o coração, cria a disponibilidade para fazer a vontade de
Deus. Se não, somos apenas nós. E nós somos muito pouca coisa.
Eminência,
muito obrigada por nos ter vindo comunicar o seu entusiasmo, muito
perceptível, e nos ter ajudado a ler este Sínodo, não só como uma
reflexão da Igreja sobre como tornar a propor um modelo antigo mas,
pelo contrário, sobre um trabalho de conversão, conduzido pelo
Espírito. Muito obrigado!
Obrigado!
Fontes:
Patriarcado de Lisboa; KTO
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