Comemora-se
este Domingo 24 de Maio dedicando o Papa a mensagem deste ano ao tema
da narração
Para
que possas contar e fixar na memória. A
vida faz-se história
MENSAGEM
DO PAPA FRANCISCO
PARA
O LIV DIA MUNDIAL DAS COMUNICAÇÕES SOCIAIS
«
“Para que possas contar e fixar na memória” (Ex 10, 2).
A
vida faz-se história »
Desejo
dedicar a Mensagem deste ano ao tema da narração, pois, para
não nos perdermos, penso que precisamos de respirar a verdade das
histórias boas: histórias que edifiquem, e não as que destruam;
histórias que ajudem a reencontrar as raízes e a força para
prosseguirmos juntos.
Na
confusão das vozes e mensagens que nos rodeiam, temos necessidade
duma narração humana, que nos fale de nós mesmos e da beleza que
nos habita; uma narração que saiba olhar o mundo e os
acontecimentos com ternura, conte a nossa participação num tecido
vivo, revele o entrançado dos fios pelos quais estamos ligados uns
aos outros.
1.
Tecer histórias
O
homem é um ente narrador.
Desde
pequenos, temos fome de histórias, como a temos de alimento.
Sejam
elas em forma de fábula, romance, filme, canção, ou simples
notícia, influenciam a nossa vida, mesmo sem termos consciência
disso.
Muitas
vezes, decidimos aquilo que é justo ou errado com base nos
personagens e histórias assimiladas.
As
narrativas marcam-nos, plasmam as nossas convicções e
comportamentos, podem ajudar-nos a compreender e dizer quem somos.
O
homem não só é o único ser que precisa de vestuário para cobrir
a própria vulnerabilidade (cf. Gn 3, 21), mas também o único
que tem necessidade de narrar-se a si mesmo, «revestir-se» de
histórias para guardar a própria vida.
Não
tecemos apenas roupa, mas também histórias: de facto, servimo-nos
da capacidade humana de «tecer» quer para os tecidos, quer para os
textos.
As
histórias de todos os tempos têm um «tear» comum: a estrutura
prevê «heróis» – mesmo do dia-a-dia – que, para encalçar um
sonho, enfrentam situações difíceis, combatem o mal movidos por
uma força que os torna corajosos, a força do amor.
Mergulhando
dentro das histórias, podemos voltar a encontrar razões heróicas
para enfrentar os desafios da vida.
O
homem é um ente narrador, porque em devir: descobre-se e
enriquece-se com as tramas dos seus dias. Mas, desde o início, a
nossa narração está ameaçada: na história, serpeja o mal.
2.
Nem todas as histórias são boas
«Se
comeres, tornar-te-ás como Deus» (cf. Gn 3, 4): esta
tentação da serpente introduz, na trama da história, um nó
difícil de desfazer.
«Se
possuíres…, tornar-te-ás…, conseguirás…»: sussurra ainda
hoje a quem se utiliza do chamado storytelling para fins
instrumentais.
Quantas
histórias nos narcotizam, convencendo-nos de que, para ser felizes,
precisamos continuamente de ter, possuir, consumir.
Quase
não nos damos conta de quão ávidos nos tornamos de bisbilhotices e
intrigas, de quanta violência e falsidade consumimos.
Frequentemente,
nos «teares» da comunicação, em vez de narrações construtivas,
que solidificam os laços sociais e o tecido cultural, produzem-se
histórias devastadoras e provocatórias, que corroem e rompem os
fios frágeis da convivência.
Quando
se misturam informações não verificadas, repetem discursos banais
e falsamente persuasivos, percutem com proclamações de ódio,
está-se, não a tecer a história humana, mas a despojar o homem da
sua dignidade.
Mas,
enquanto as histórias utilizadas para proveito próprio ou ao
serviço do poder têm vida curta, uma história boa é capaz de
transpor os confins do espaço e do tempo: à distância de séculos,
permanece actual, porque nutre a vida.
Numa
época em que se revela cada vez mais sofisticada a falsificação,
atingindo níveis exponenciais (o deepfake), precisamos de
sapiência para patrocinar e criar narrações belas, verdadeiras e
boas.
Necessitamos
de coragem para rejeitar as falsas e depravadas.
Precisamos
de paciência e discernimento para descobrirmos histórias que nos
ajudem a não perder o fio, no meio das inúmeras lacerações de
hoje; histórias que tragam à luz a verdade daquilo que somos, mesmo
na heroicidade oculta do dia a dia.
3.
A História das histórias
A
Sagrada Escritura é uma História de histórias.
Quantas
vicissitudes, povos, pessoas nos apresenta!
Desde
o início, mostra-nos um Deus que é simultaneamente criador e
narrador: de facto, pronuncia a sua Palavra e as coisas existem (cf.
Gn 1).
Deus,
através deste seu narrar, chama à vida as coisas e, no apogeu, cria
o homem e a mulher como seus livres interlocutores, geradores de
história juntamente com Ele.
Temos
um Salmo onde a criatura se conta ao Criador: «Tu modelaste as
entranhas do meu ser e teceste-me no seio de minha mãe.
Dou-Te graças por me teres feito uma maravilha estupenda (…).
Quando os meus ossos estavam a ser formados, e eu, em segredo, me
desenvolvia, recamado nas profundezas da terra, nada disso Te era
oculto» (Sal
139/138, 13-15).
Não
nascemos perfeitos, mas necessitamos de ser constantemente «tecidos»
e «recamados».
A
vida foi-nos dada como convite a continuar a tecer a «maravilha
estupenda» que somos.
Neste
sentido, a Bíblia é a grande história de amor entre Deus e a
humanidade.
No
centro, está Jesus: a sua história leva à perfeição o amor de
Deus pelo homem e, ao mesmo tempo, a história de amor do homem por
Deus.
Assim,
o homem será chamado, de geração em geração, a contar e fixar
na memória os episódios mais significativos desta História de
histórias: os episódios capazes de comunicar o sentido daquilo que
aconteceu.
O
título desta Mensagem é tirado do livro do Êxodo, narrativa
bíblica fundamental que nos faz ver Deus a intervir na história do
seu povo.
Com
efeito, quando os filhos de Israel, escravizados, clamam por Ele,
Deus ouve e recorda-Se: «Deus recordou-Se da sua aliança com
Abraão, Isaac e Jacob.
Deus
viu os filhos de Israel e reconheceu-os» (Ex 2, 24-25).
Da
memória de Deus brota a libertação da opressão, que se verifica
através de sinais e prodígios.
E
aqui o Senhor dá a Moisés o sentido de todos estes sinais: «Para
que possas contar e fixar na memória do teu filho e do filho do
teu filho (…) os meus sinais que Eu realizei no meio deles.
E
vós conhecereis que Eu sou o Senhor» (Ex 10, 2).
A
experiência do Êxodo ensina-nos que o conhecimento de Deus se
transmite sobretudo contando, de geração em geração, como Ele
continua a tornar-Se presente.
O
Deus da vida comunica-Se, narrando a vida.
O
próprio Jesus falava de Deus, não com discursos abstractos, mas com
as parábolas, breves narrativas tiradas da vida de todos os dias.
Aqui
a vida faz-se história e depois, para o ouvinte, a história faz-se
vida: tal narração entra na vida de quem a escuta e transforma-a.
Também
os Evangelhos – não por acaso – são narrações. Enquanto nos
informam acerca de Jesus, «performam-nos»[1] à imagem de Jesus,
configuram-nos a Ele: o Evangelho pede ao leitor que participe da
mesma fé para partilhar da mesma vida.
O
Evangelho de João diz-nos que o Narrador por excelência – o
Verbo, a Palavra – fez-Se narração: «O Filho unigénito, que é
Deus e está no seio do Pai, foi Ele quem O contou» (1, 18).
Usei
o termo «contou», porque o original exeghésato tanto se
pode traduzir «revelou» como «contou». Deus teceu-Se pessoalmente
com a nossa humanidade, dando-nos assim uma nova maneira de tecer as
nossas histórias.
4.
Uma história que se renova
A
história de Cristo não é um património do passado; é a nossa
história, sempre actual.
Mostra-nos
que Deus tomou a peito o homem, a nossa carne, a nossa história, a
ponto de Se fazer homem, carne e história.
E
diz-nos também que não existem histórias humanas insignificantes
ou pequenas.
Depois
que Deus Se fez história, toda a história humana é, de certo modo,
história divina.
Na
história de cada homem, o Pai revê a história do seu Filho descido
à terra.
Cada
história humana tem uma dignidade incancelável.
Por
isso, a humanidade merece narrações que estejam à sua altura,
àquela altura vertiginosa e fascinante a que Jesus a elevou.
Vós
«sois uma carta de Cristo – escrevia São Paulo aos Coríntios –,
confiada ao nosso ministério, escrita, não com tinta, mas com o
Espírito do Deus vivo; não em tábuas de pedra, mas em tábuas de
carne que são os vossos corações» (2 Cor 3, 3).
O
Espírito Santo, o amor de Deus, escreve em nós.
E,
escrevendo dentro de nós, fixa em nós o bem, recorda-no-lo.
De
facto, re-cordar significa levar ao coração,
«escrever» no coração.
Por
obra do Espírito Santo, cada história, mesmo a mais esquecida,
mesmo aquela que parece escrita em linhas mais tortas, pode tornar-se
inspirada, pode renascer como obra-prima, tornando-se um apêndice de
Evangelho.
Assim
as Confissões de Agostinho, o Relato do Peregrino de
Inácio, a História de uma alma de Teresinha do Menino Jesus,
os Noivos prometidos (Promessi sposi) de Alexandre
Manzoni, os Irmãos Karamazov de Fiódor Dostoevskij… e
inumeráveis outras histórias, que têm representado admiravelmente
o encontro entre a liberdade de Deus e a do homem.
Cada
um de nós conhece várias histórias que perfumam de Evangelho:
testemunham o Amor que transforma a vida.
Estas
histórias pedem para ser partilhadas, contadas, feitas viver em
todos os tempos, com todas as linguagens, por todos os meios.
5.
Uma história que nos renova
Em
cada grande história, entra em jogo a nossa história.
Ao
mesmo tempo que lemos a Escritura, as histórias dos Santos e outros
textos que souberam ler a alma do homem e trazer à luz a sua beleza,
o Espírito Santo fica livre para escrever no nosso coração,
renovando em nós a memória daquilo que somos aos olhos de Deus.
Quando
fazemos memória do amor que nos criou e salvou, quando metemos amor
nas nossas histórias diárias, quando tecemos de misericórdia as
tramas dos nossos dias, nesse momento estamos a mudar de página.
Já
não ficamos atados a lamentos e tristezas, ligados a uma memória
doente que nos aprisiona o coração, mas, abrindo-nos aos outros,
abrimo-nos à própria visão do Narrador.
Nunca
é inútil narrar a Deus a nossa história: ainda que permaneça
inalterada a crónica dos factos, mudam o sentido e a perspectiva.
Narrarmo-nos
ao Senhor é entrar no seu olhar de amor compassivo por nós e pelos
outros.
A
Ele podemos narrar as histórias que vivemos, levar as pessoas,
confiar situações.
Com
Ele, podemos recompor o tecido da vida, cosendo as rupturas e os
rasgões.
Quanto
nós, todos, precisamos disso!
Com
o olhar do Narrador – o único que tem o ponto de vista final –,
aproximamo-nos depois dos protagonistas, dos nossos irmãos e irmãs,
actores juntamente connosco da história de hoje.
Sim,
porque ninguém é mero figurante no palco do mundo; a história de
cada um está aberta a possibilidades de mudança.
Mesmo
quando narramos o mal, podemos aprender a deixar o espaço à
redenção; podemos reconhecer, no meio do mal, também o dinamismo
do bem e dar-lhe espaço.
Por
isso, não se trata de seguir as lógicas do storytelling, nem
de fazer ou fazer-se publicidade, mas de fazer memória daquilo que
somos aos olhos de Deus, testemunhar aquilo que o Espírito escreve
nos corações, revelar a cada um que a sua história contém
maravilhas estupendas.
Para
o conseguirmos fazer, confiemo-nos a uma Mulher que teceu a
humanidade de Deus no seio e – diz o Evangelho – teceu
conjuntamente tudo o que Lhe acontecia.
De
facto, a Virgem Maria tudo guardou, meditando-o no seu coração (cf.
Lc 2, 19).
Peçamos-Lhe
ajuda a Ela, que soube desatar os nós da vida com a força suave do
amor:
Ó
Maria, mulher e mãe, Vós tecestes no seio a Palavra divina, Vós
narrastes com a vossa vida as magníficas obras de Deus.
Ouvi
as nossas histórias, guardai-as no vosso coração e fazei vossas
também as histórias que ninguém quer escutar.
Ensinai-nos
a reconhecer o fio bom que guia a história.
Olhai
o cúmulo de nós em que se emaranhou a nossa vida, paralisando a
nossa memória.
Pelas
vossas mãos delicadas, todos os nós podem ser desatados.
Mulher
do Espírito, Mãe da confiança, inspirai-nos também a nós.
Ajudai-nos
a construir histórias de paz, histórias de futuro.
E
indicai-nos o caminho para as percorrermos juntos.
Roma,
em São João de Latrão, na Memória de São Francisco de Sales, 24
de Janeiro de 2020.
[Franciscus]
[1]
Cf. Bento XVI, Carta enc. Spe salvi (30/XI/2007), 2: «A
mensagem cristã não era só "informativa", mas
"performativa". Significa isto que o Evangelho não é
apenas uma comunicação de realidades que se podem saber, mas uma
comunicação que gera factos e muda a vida».
Na
Eucaristia celebrada na Casa Santa Marta no dia 1 de Abril de 2020, o
Papa Francisco dirigiu seu pensamento a quem trabalha nos meios de
comunicação, para que ajudem as pessoas a suportarem este momento
de isolamento.
Fontes:
Santa Sé; Notícias do Vaticano
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